Romance policial (I)

Em 2005, um homem morreu perto de minha casa. Era dono de um bar, conhecido pelo temperamento forte e por ser um “Dom Casmurro” contemporâneo. Logo todo mundo ficou sabendo que se tratava de suicídio. Havia uma pista que sugeria isso. Ele havia escrito uma frase em que revela o suposto motivo que o levou a tirar a própria vida: o seu clube do coração, um time local que tinha sido rebaixado para a última divisão do futebol nacional.

Algumas pessoas ficaram sabendo, mas não foram convencidas. Diziam que se matar pelo time que torce era “muito pouco”, que havia “algo mais”. Entre esses, alguns especulavam que a razão verdadeira era dinheiro ou mulher.

Houve até mesmo especulações religiosas que tentavam entender para onde foi a alma do pobre homem. Uma mulher mencionou uma teoria que certamente causou horror em evangélicos e católicos, mas que era interessante e original, apesar da “heterodoxia” chocante: o suicida não estaria nem no céu, nem no inferno. Estaria num “espaço vazio e infinito” até Deus decidir o que fazer com a alma dele. Um pastor indignado retrucou.

“Não! Isso está errado. Deus não tem dúvidas. Ele sabe de tudo e por isso sabia o que fazer com a alma daquele homem antes mesmo de acontecer a morte dele”, disse o pastor. “Deus decidiu, apenas não sabemos qual a decisão dele”.

Acho que o assunto durou uma semana e depois caiu no esquecimento.

No entanto, quase dezenove anos depois, a filha do suicida recebeu um telefonema.

“Eu apaguei seu pai.”

A moça começou a soluçar.

“Não brinca com isso, canalha!”

“Não é brincadeira. Eu, Corleone, mandei acabar com ele.”

O suposto assassino estava dizendo que matou o pai dela e fez parecer suicídio. Provável que fosse trote. Mas a brincadeira de mau gosto mexeu com a filha, que resolveu contratar um detetive particular.

O detetive era, diferentemente do suicida, um homem com temperamento moderado. Possuía a mente aberta, gostava das deduções lógicas, do raciocínio geral, da teoria antes do fato. O nome “Corleone” chamou a atenção.

É personagem de um romance intitulado “O Poderoso Chefão”. O engraçadinho gosta de literatura da máfia. A conclusão do investigador foi rápida e contundente:

“É trote. O cara gosta de Mario Puzo”, disse o detetive, enquanto anotava. “Ele usou do personagem para sacanear.”

No entanto, por que a brincadeira envolveu o pai da moça, quando há tanta gente que poderia virar alvo da chalaça? Essa pergunta incomodou o detetive. A sua mente aberta a novas ideias o incentivou a tentar um método incomum.

Em vez de pesquisar suspeitos nos registros policiais, vasculhou o nome “Corleone” em arquivos digitais de ficção na internet. Localizou alguns autores que diziam ser de Salvador, Bahia. Leu cada conto e novela por horas. Até que chegou a uma ficção intrigante. O título: “O falso suicida”. O enredo era assustadoramente idêntico ao que o autor do trote havia dito. Um chefe do tráfico conhecido como “Corleone” ordenara a morte de um homem. A ordem:

“Faça parecer suicídio.”

“Corleone” queria se vingar do homem. E aqui emerge um detalhe que, por motivos óbvios, o sacana do trote não contou. Quando criança, o tal do “Corleone” levava cascudo do cara que ele mandou matar. Ele sentiu tanto ódio que, ao crescer e adquirir poder criminoso, ordenar a morte do homem foi uma das primeiras coisas que fez.

Mas era tudo ficção.

Entretanto, o que importava era o autor da história, que usava um pseudônimo. Ao conversar com parentes do suicida, ele conseguiu descobrir a criança que ficou vingativa ao virar homem. Informou à filha que recebeu o trote.

“Ele é um pobre coitado”, ela disse.

O cara não era chefe do crime. Aquela ficção que escreveu era apenas uma idealização, um desejo oculto dele.

“Corleone” (o autor, não o personagem) apenas externou seu ódio na forma de uma ficção policial - uma ficção ruim, aliás. Assim como há rappers que manifestam a raiva em versos diretos e com linguagem forte. Trata-se de um modo legítimo de colocar a frustração para fora. O único erro de “Corleone” foi passar um trote, brincar com a dor de uma pessoa.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 16/06/2024
Reeditado em 16/06/2024
Código do texto: T8087254
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