Nos tempos do Vovô Zé

Vovô Zé nasceu em 04/04/1889, ano da Proclamação da República. Seu nome de batismo era José Rodrigues Santiago Filho. Seu pai, José Rodrigues Santiago, era conhecido como Juca do Pari. De seus irmãos, o único que permaneceu em Pitangui foi Benjamim Santiago, pai do "Zequinha da Farmácia".

Segundo tio Zezé, recentemente falecido em Pará de Minas, a família vinha de um lugar chamado Caxingó. Dizia que era um lugar "pra lá do Brumado". Não consegui saber onde fica.

Minha avó, Aurora Barbosa, conhecida por Lóia, Lurica ou Lilica, teve muitos filhos, mas só cinco chegaram à idade adulta: Lourdes, Terezinha, José Antônio (Zequinha), José (Zé do Vô), falecido este ano em Pará de Minas, e o caçula, José Maria, há muito radicado em Anápolis, Goiás. .

Vovô era açougueiro, segundo contava. Era chamado sempre para matar e descarnar porcos. Aí, era dia de festa para adultos e crianças. Pobres suínos! O ruim disso era escutar os gritos dos porcos na hora do sacrifício. A fase seguinte era sapecar o animal com o fogo de folhas de bananeira seca, tudo sob a batuta de vovô Zé.

Depois de sapecados, vovô cortava os pedaços e guardava as peças de carne e toucinho em latas. Enquanto isso, mamãe e vovó já fritavam torresmo e pele para nós e os meninos vizinhos, que vinham participar da festança..

Vovô tinha tino comercial. Vendia verduras e frutas colhidas no seu imenso terreno. Nessa época, quando a pessoa envelhecia ou se acidentava, só podia contar com a familia, pois não tinha aposentadoria nem existia ajuda do Governo. Eles tinham, pelo menos, o terreno.

Vovó Lóia, para ajudar na despesa, fazia sabão em casa. E, claro, lavava, limpava e cozinhava. Tinha uma ferida recorrente entre os dedos das mãos. Ela dizia que era por causa de lavar roupa com o sabão caseiro, que tinha soda cáustica na fórmula.

Eles criavam porcos e galinhas, tinham pomar e horta no quintal. Na época própria, plantavam milho, transformado depois, entre outras coisas, no inesquecível mingau de milho verde, o curau dos primos goianos.

Vovô Zé não parava. Mesmo velho, saía a vender frutas e verduras de porta em porta. Também improvisou uma vendinha num dos quartos da casa, onde, acredito, tenha sido o cômodo do açougue. Eu mesmo fui seu orgulhoso "vendedor". Achava o máximo ficar na janela aguardando freguês para vender os produtos do quintal.

Vovô também foi o primeiro acumulador que conheci. Na volta de suas vendas na cidade, catava pedaços de arame, pregos enferrujados e outras coisas que encontrava em seu caminho. Em casa, desentortava pregos e guardava os pedaços de arame, justificando com a frase: "uma hora serve".

Na política, vovô votava na UDN, União Democrática Nacional, igual a minha mãe. Meu pai era PTB, (Partido Trabalhista Brasileiro, que, segundo o Google, tinha sido "criado por Getúlio Vargas para servir de anteparo entre os sindicatos e os comunistas"). Apesar dessa divergência na política, nunca vi nenhuma briga por politica entre meus país.

A toda hora íamos em sua casa, a pedido de mamãe ou por vontade própria. Na hora do almoço, um de nós ia buscar couve, alface, tomate, cebola, cebolinha de folha ou outra mistura qualquer.

A essa hora, ele sempre estava sentado na cozinha aguardando a "bóia", como dizia. Ficava com as pernas cruzadas, pensando na vida e esfregando as mãos. Todos os netos tinham que parar a seu lado e deixar que batesse com o indicador atrás de nossas orelhas para ouvir o estalo. Equivalia ao ingresso para sua casa, o quintal, o galinheiro, o chiqueiro, o canteiro das verduras, as frutas e as prosas.

Nas noites de inverno, botava uma cadeira no borralho do fogão e se sentava na mesma posição da hora do almoço. Ficava lá do alto, observando a Humanidade, feito um adorador do fogo. Às vezes, nem se dava conta da nossa chegada: estava cantando "A Ti Flor do Céu" com imensa tristeza. Era afinadíssimo e tinha o mesmo timbre do tio Zezé, que ficou conhecido por uma série de vídeos feitos pelo amigo Paulo Miranda.

Vovô Zé tinha também uma brincadeira para nos assustar. Iniciava suavemente uma frase, como se fosse declamar uma poesia: "eu estava ao pé de uma casa, escutando uma fala conhecida, de repente um cachorro me mordeu e eu gritei SAI CACHORRO". O "sai cachorro" era um grito que contrastava com o começo suave da frase. Mesmo depois de saber o final, a gente ainda se assustava, porque ele mudava a entonação ou aumentava a pausa, criando suspense, para gritar de novo. O susto era quase sempre o mesmo.

Meus irmãos e eu éramos fanáticos pelo enorme quintal, que se dividiu em três, depois que minha mãe e tio Zezé construíram suas casas. Algum tempo depois, por compra ou doação, os quintais foram ampliados e desceram em fatias iguais até a beira do córrego, como permanecem até hoje.

Eram muitas árvores: pés de café, manga, goiaba, laranja, jabuticaba, abacate, jambo, coco, genipapo, moitas de bananeira e os enormes pés de cambuí, que cresciam até alcançar 20 a 30 metros em pouco tempo. Esses não tinham frutas, mas tinham as sementes que chamávamos de birosca e os galhos que, ao secar, caíam e se transformavam em espadas, assim como o bambu virava cavalo do Zorro ou do Roy Rogers.

Essa maravilha de quintal, no entanto, não era idílico em todos os rincões. Como, por muito tempo, vovô não tinha banheiro na casa, as necessidades se faziam no fundo do quintal, à beira do córrego, entre as bananeiras. O córrego é o Baiacu. Nasce na serra e atravessa a cidade, até desaguar no rio Pará, na divisa com o município de Conceição .

Já nos últimos anos de sua vida, apareceu a TV. Ele passou a ir a nossa casa todas as noites para assistir o Repórter Esso. Seu interesse era a política. Justamente nessa época andava em marcha a chamada "Revolução de 64." Ele queria informar-se. Apesar de um pouco surdo, sentava-se em frente da TV e se despedia quando terminava o noticiário.

Vovô Zé faleceu em 05/04/1965. Nessa data, passaria na TV um vídeo-tape de Brasil e União Soviética. Papai e eu, fanáticos pela Seleção, saíamos de fininho do velório e íamos em casa para assistir pedaços do jogo a baixo volume.

Nota:

Escrevi este texto para prestar homenagem a meu avô materno e atender a um pedido de Rosana Mello Franco, que gostaria de conhecer a vida do bisavô de seus filhos Israel e Sarah.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 15/06/2024
Reeditado em 16/06/2024
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