A exterminadora
A exterminadora
Estava próximo a uma lavoura de milhos, sob um frio intenso. O local, calmo e tranquilo, contrastava com o colóquio que tive ali, com uma jovem. Nádia é o nome da garota, que aparentava uns vinte anos.
Já no início da conversa ela, sorridente, lascou:
- Os favelados têm que ser exterminados da face da Terra.
Assustei-me com afirmativa tão grosseira naquele rostinho lindo.
Mas resolvi dar asas às suas convicções e argumentei que as crianças deveriam ser poupadas.
- Nada disso. Elas já aprenderam tanta maldade que não devem sobreviver. Crescerão, construirão novos barracos e continuarão assaltando, matando, drogando-se.
Foram mais ou menos essas as palavras ditas junto a um sorriso perverso, embora bonito. Dei corda para que ela não parasse de expor todo o mal que a afligia. Não escaparam nem “os alemães que adoram Hitler, aquele sanguinolento”.
O que está entre aspas são declarações dela e nada do que ela disse tem o meu aval. Ou será que pactuo com algumas das colocações?
Falou dos skinheads, “brutamontes que não amam ninguém, nem a si próprios”. E logo saltou para os políticos, “noventa por cento deles são uma corja de ladrões”; o restante ela deixaria sobreviver para ver se levariam o Brasil a um futuro melhor.
E passava de um assunto para outro com a facilidade de quem apenas vira páginas de um caderno. “Os drogados não deveriam existir. Não precisamos deles para nada. Só atrapalham as novas gerações que virão”. E no mesmo pacote logo incluía os traficantes e não se esquecia dos subornadores e dos subornados, “ambos não prestam”. Coitados dos homossexuais, “o amor é tão bom entre pessoas de sexos diferentes que não vejo qual o prazer que essas raças sentem”. E deu frisou educadamente ao pronunciar a palavra “raças”.
Embora continuasse com aquele sorriso angelical, permanecia jogando farpas venenosas para todo lado. E bateu firme nos bêbados, “esses pinguços que chegam em casa quebrando tudo e espancando a mulher, antes de serem eliminados precisavam ir para a cadeia e apanhar bastante para verem o que é bom para tosse”. E completou, “ou melhor, para curar a ressaca”.
E não deixou em paz nem os jogadores inveterados, desancando-os esclareceu, “me refiro aos que apostam o que têm e o que não têm, deixando as famílias passarem fome por causa do jogo”.
Cada vez ela mais se empolgava, pois contava com um bom ouvinte que disfarçava um falso apoio e, assim, nem os pobres índios foram poupados, “esses malandros saíram de suas terras para viverem na cidade grande com a ajuda do governo. O que eles nos trazem de bom? Não vejo o porquê de sua não extinção”.
Eu dava corda e ela seguia seu rol de malevolências, “homens e mulheres que traem seus pares não merecem existir. São pessoas que não respeitam a confiança de quem os ama, imagine se respeitarão os demais”. Até um animal foi incluído na lista da Nádia, “já que é muito difícil identificar as cobras venenosas, vamos extirpar de nosso planeta todas elas”, sentenciou.
Embora essa verve ruinosa, essa bile que ela destila em cada frase, despedi-me esperançoso de poder voltar a vê-la. E me questionei se o que eu gostaria era de rever seu rosto formoso, seu sorriso expressivo, ou se, bem lá no fundo, eu concordo, admito, aprovo e, até, professo – mas jamais confesso – algumas das idéias daquela beldade. Será?!...
Passado alguns meses desse encontro eu estava numa cidade do interior onde se realizava a 20a Festa do Motorista e do Colono.
Assistia ao desfile de carroças e outros equipamentos, todos ornamentados com legumes e hortaliças. O proprietário que conseguisse mais beleza num de seus veículos de trabalho, ganharia como prêmio uma motocicleta zero quilômetro. Lá pelas tantas alguém colocou as duas mãos sobre meus olhos, vendando-os por completo. Passei a mão e senti uma maciez que denunciava serem mãos femininas. Pedi que falasse algo. Ela disse, suavemente, com os lábios quase colados ao meu ouvido:
- Advinha quem é?
Senti vontade de falar logo seu nome, mas com medo de errar, perguntei sua idade.
- Uns vinte anos.
- Nádia, é você?
Ela retirou as mãos e me deu um grande abraço e dois beijos no rosto, exprimindo a grande saudade, que era recíproca.
Conversamos amenidades enquanto em nossa frente desfilavam cavaleiros vestidos a rigor, fanfarras, máquinas agrícolas, tratores e carroças. Os carros de tração animal, enfeitados, ora trazendo moinhos de cana de açúcar ou de farinha, ora criação de aves, porcos, carneiros, trituradores de ração, ordenhadeiras mecânicas, resfriadores de leite, motobombas, até ferros de passar roupa a carvão e amostras da produção dos descendentes de alemães.
Terminado o desfile, próximo ao meio dia, convidei-a para almoçar comigo ali no barracão da festa. Aceitou com aquela alegria ímpar. Sentamos num banco para guardar o lugar, pois a gentarada resolveu encher os pandulhos no mesmo horário.
A comida era saborosa: galinha caipira, polenta e recheio feito dos miúdos da ave.
Retomamos o assunto iniciado há algum tempo: quais pessoas ela gostaria de exterminar dessa vez?
- Vou começar pelas invejosas. São pessoas que não tem vida própria. Mulheres que por inveja da vizinha obrigam o banana do marido a comprar fogão novo só para não ficar por baixo. Tenho até pena delas, mas não devem competir dessa maneira e, portanto, para que existirem?
Alegrei-me e, sempre sorrindo, instiguei e ela caiu como uma patinha e abriu o verbo:
- Fumantes nem deveriam nascer. Têm mau cheiro, são doentes e provocam doenças. Outra raça ruim é a pessimista. O percentual desses brasileiros deve ser muito grande, pois o país não vai pra frente. Acho que o pessimismo traz só problemas e não soluções.
Vi em seu semblante um sorriso enigmático. Não sabia se era felicidade de me encontrar ou alegria de poder botar para fora toda a raiva que sente de seus desiguais. Continuamos a conversar enquanto bebíamos cerveja e degustávamos aquele manjar simples e de fazer lamber os beiços.
- Meu querido. Sinto pena das pessoas que não se acham bonitas.
Eu, particularmente, me acho linda. Tenho que me valorizar. O que achas?
- Tenho duas colocações sobre o assunto. Primeiro, foi o tratamento com que me premiastes. Adorei o “querido”. Segundo, é sobre a beleza e a feiúra. Costumo acompanhar o ditado popular: se eu não me achar bonito, quem irá me achar? Eu me considero bonito e sempre vou gostar de mim.
E arrisquei:
- Posso também te tratar de querida?
Deixando o papo meloso, vamos ao assunto principal, extermínio.
- As pessoas mentirosas e fofoqueiras poderiam sumir ou morar na Cochinchina. Não tenho nenhum prazer em encontrá-las. Se estou com elas, finjo. Tem uma que, quando lhe contei os meus pensamentos, escreveu uma crônica e colocou ao conhecimento público.
- Querida, me perdoa – retruquei com sinceridade.
E acrescentei:
- Mil perdões. Espero que não me extermines.
Ela sorriu, me deu um beijo na boca e proferiu:
- Meu bem, eu te quero sempre junto, pois sabes me escutar, és alegre e poderei ser feliz contigo.
Aroldo Arão de Medeiros
03/08/2007