O olho vagueia porque a boca não diz

Às vezes eu penso estar carente. Mas tudo o que me falta as palavras preenchem. Elas se amontoam nas crateras que se formam. Os olhares me envaidecem, mas não me inteiram. Alguma leitura, por sorte, me abraça. Mas também me rouba a mente. Às vezes me mata. Sou rabiscada de tudo que não vivi. No meu corpo só existem linhas em branco. No azul, o sangue. Na carne, o nada. Mas na alma, e somente nela, sou só bordados. Antes de pintarem as paredes das cavernas, os homens pintavam de ideias as suas mentes. De desejos os seus corações. Não é só filho que o corpo pare. Olhem os sentires, essas crias expurgadas em meio ao sangue e outros fluidos. Sentir é ter um parto todo dia. A hora chega no relógio da dor, é preciso. Quem não dá à luz absorve palavras malignas. Algo me diz que se fechar pra tudo é cancerígeno. Sou tão aberta por dentro, espero que minhas células saibam disso.

Não digo mais que não sei por que me olham. Mas ainda não sei o que veem. Gosto de detalhes. Gostaria de saber se bate com o que eu vejo. E eu com os mesmos olhos me vejo diferente a cada espelho. Era um bar daqueles pra turista ver. Mas quem foi observada fui eu. Me fizeram marcações com o olhar. Os garçons se trombaram. Falaram coisas machistas pros nossos amigos que nos acompanhavam. Quando fomos posar pras fotos, só as meninas, eles pararam de trabalhar durante os segundos de um clique. Enfileiraram-se diante de nós. Me olhavam com olhos de peixe morto, com a boca entreaberta. Outros eram mais vivos, apontavam com a cabeça para que os seus amigos também vissem. Na extremidade de uma longa mesa de madeira em que estávamos, a distância não impediu o fito ansioso e recorrente de alguém que caiu na perdição de uma paixão sem jeito, mal curada, e que parece viver esperando que eu esboce um talvez pra sua eterna querência de um sim. Sei disso não por me achar a “frevo mulher” de Zé Ramalho, mas porque ele é óbvio. Me olha com olhos escancarados, falantes, convidativos. Não mudou as palavras desde o meu não, mas agora elas devem estar entaladas — o que justifica a sua quase mudez. Desejo que ele me escalde em realidade até sair de mim esse gosto que ele inventou. A mente é perigosa, mas o coração é perverso. Fez ele gostar de mim, que gosto sobretudo de distâncias. Tenho paixão pelo que não possuo. Porque sou curiosa. Porque não saber enterra no papel a ponta do meu lápis cansado. Querer pra depois vir o tédio de possuir. A inconstância deve ser o pior defeito que talvez eu tenha herdado. Logo eu, que digo ter medo de pontos finais. Mas também de reticências. Acho que me falta experimentar o ponto continuativo. Mas pra começar não há pontuação, só há a palavra. A difícil palavra do início. No espanhol, existe uma antecipação da intenção da frase. As exclamações e interrogações vêm antes (e depois). Facilita ao leitor o entendimento do tom. É uma língua pra ansiosos. E pra intensos. Gosto que em espanhol “te amo” é “te quiero”. E o que é o amor senão um monte de querer? É um quereres sem fim até que se finde.