Machado de Assis: o cronista.

Machado de Assis: o cronista.

 

Resumo:

A crônica assinada por Lélio, pseudônimo de Machado de Assis, fora publicada no jornal "Gazeta de Notícias", na seção "Balas de Estalo", em janeiro de 1885 e permaneceu “esquecida” durante todos esses anos. As “Balas de Estalo” eram sempre publicadas na página dois, o que levou todos os pesquisadores a consultar apenas essa página para organizar as edições machadianas, sem se dar o trabalho de ler o jornal inteiro. Em princípio, é que o cronista admite ter um “resto de costela romântica”. Em texto de 1892, ele afirma: “Gente que mamou leite romântico, pode meter o dente no rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! meu doce leite romântico!”. Além disso, revela um fascínio pelo Oriente: no mesmo texto, afirmou que ao ler as palavras “Cinco odaliscas” numa notícia de jornal, sentiu a necessidade de “tomar fôlego” e confessa: “Todas as orientais de Hugo vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e sândalo”.

Palavras-chave: Literatura. Crônica. Cronista. Machado de Assis. Crônicas de Lélio.

 

 

Na obra intitulada "a vida ao rés-do-chão" de Antonio Candido há indicava que a sedução da crônica é coisa bem antiga, pois fica perto de nós, de nosso cotidiano, ainda que resvale no lírico. Como Candido assinalou a crônica pega miúdo e nesta mostra a grandeza, beleza e singularidade insuspeitas. É amiga de verdade principalmente porque quase sempre usa o humor.

 

Ao longo de quarenta anos Machado escreveu duas crônicas , como "Balas de Estalo" escrita no jornal carioca Gazeta de Notícias em 1885. A primeira refere-se ao comentário a respeito da morte de Victor Hugo e, na segunda, uma análise da tristeza do Rio de Janeiro que teria perdido o cantor italiano Tamagno.

 

Sem dúvida, o Bruxo do Cosme Velho fora uma grande cronista do século XIX, totalizando cerca de mais de seiscentas crônicase, elevou seus textos jornalísticos ao mesmo patamar de toda suaa obra. Assim, o que deveria ser apenas efêmero por conta de estar publicado em jornal, tornou-se perene e rica fonte de consulta para o estudo da literatura, sociais e históricos.

 

As "Balas" de Machado eram críticas sagazes, mas é preciso conhecer o contexto em que foram escritas. Seus textos publicados em jornal comentavam as notícias da semana e resta vinculado a certo momento histórico por isso a análise do contexto histórico é crucial para compreensão da crônica machadiana.

 

In litteris: "Rien n’est sacré pour un sapeur! Leio nas folhas públicas, que a morte de Vítor Hugo tem produzido tanta sensação como os preços baixos da grande alfaiataria Estrela do Brasil. Rien n’est sacré pour un ... tailleur! Eu, em criança, ouvi contar a anedota de uma casa que ardia na estrada. Passa um homem, vê perto da casa uma pobre velhinha chorando, e pergunta-lhe se a casa era dela. Responde-lhe a velha que sim - Então permita-me que acenda ali o meu charuto. Imitemos este homem polido e econômico. Vamos acender os charutos no castelo de Hugo, enquanto ele arde. Vamos todos, havanas e quebra queixos, finos ou grossos, e os mesmos cigarros, e até as pontas de cigarro. Nunc est fumandum . Incêndios duram pouco, e os fósforos são vulgares. Completemos as estrofes com coletes, façamos de uma ode uma sobrecasaca. Está chorando, meu amigo? Enxugue os olhos no cós destas calças. Vinte e dois mil-réis, serve-lhe? Vá lá, vinte e um. E olhe que é por ser para si. A gramática não é boa, mas o sentimento é sincero. Ce siècle avait deux ans ... Pano fino; veja aqui, que está mais claro. Gastibelza, l’homme à la carabine... Vai pelos vinte e um? é de graça. Vinte? Vinte é pouco, dê vinte e quinhentos. Não? Está bom; vá lá... Poète, ta fenêtre était ouverte au vent ... (...) Sei que resta a polca, que não há de querer perder um petisco tão raro, como a morte de um grande poeta. Há a dificuldade dos títulos, que, segundo a estética deste gênero de dança, devem ser como os da última ou penúltima publicada: Seu Filipe, não me embrulhe! Não se pode dizer: - Seu Vítor, não me embrulhe! A morte, ainda que seja de um grande espírito, não se compadece com este gênero de capadoçagem. O modo de combinar as coisas seria dar às polcas comemorativas um título que, com o pretexto de aludir a escritos do poeta, trouxesse o pico do escândalo. Freira no serralho, por exemplo, é excelente, com esta epígrafe do poeta: De nonne, elle devient sultane (De freira, ela se torna sultana). E pontinhos. Ou então, este outro: A filha do papa! Eia, polquistas, não desesperemos da basbacaria humana".

 

Quando Victor Hugo morreu em Paris em 22 de maio de 1885, uma multidão avançou pela avenida Champs-Élysées em direção ao Arco do Triunfo, onde o corpo do poeta seria velado. E, os jornais da época encarregaram-se de descrever o cortejo formado por muitas pessoas que seguiam o funeral do autor de Les Misérables , vítima de uma congestão pulmonar.

 

Aqui, no Rio de Janeiro, a tristeza também foi sentida, principalmente, por saber da profunda admiração do Imperador Dom Pedro II nutria pelo escritor francês. Todos lamentavam a partida final do criador de Quasímodo. Todos, exceto, Machado de Assis, pois em sua crônica de 28 de maio de 1885 escreveu sob o pseudônimo de Lélio, tratou com absoluta frieza e desdém a morte de Victor Hugo. A última contribuição de Lélio é datada de 21 de maio, portanto, foi anterior à morte do poeta francês. E, nos dias seguintes, houve estranha lacuna e, enfim, essa crônica, no mínimo surpreendente.

 

Machado era admirador da obra de Victor e, procurou-se em crônicas anteriores, um lamento, um comentário de pesar, e nada encontramos. O comportamento inusitado diante do falecimento de um escritor mundialmente reconhecido e que, como se sabe, era um dos prediletos do escritor fluminense. Torna-se difícil compreender a conduta de Machado na crônica de 28 de maio.

 

E, Eugênio Gomes apontou possível explicação, in litteris: "A função de cronista estava na época condicionada a um tipo de galhofa que era garantia segura de êxito e Machado de Assis não media sacrifício em exercer o gênero de maneira cabal (...) Ser cronista era lionizar o mundo social de modo irresistível".

 

Porém, esse entendimento não se sustenta após um estudo dos jornais da época. A morte do autor das Orientales foi destacada nos periódicos brasileiros quee acompanhavam ciosamente todas as notícias vindas de Paris. E, sua agonia fora minuciosamente narrada e, até o seu enterro, e muitos escritores desconhecidos procuraram se promover às custas do óbito do francês, acendendo seu "charuto na casa em brasa". O que pode ser comprovado por meio da leitura dos jornais de maio a junho de 1885. Aliás, a saúde do poeta francês estava abalada há algum tempo pois fora acometido por uma pneumonia e lesão cardíaca em 14 de maio.

 

E, quatro dias depois, a agência Havas enviou um telegrama de Paris já informando sobre a gravidade de sua doença e que seu estado inspirava muitos cuidados. Essa notícia foi publicada na Província de São Paulo em 20 de maio, seria a primeira de uma longa série: no dia seguinte, na primeira página da Gazeta de Notícias, na seção intitulada "Telegramas" que informava que o estado do escritor francês continuava gravíssimo e, a população parisiense revelava a maior ansiedade por notícias do ilustre enfermo.

 

E, de fato, Victor começava a agonizar tanto que a noite entre 19 e 20 foi horrível e, o escritor despejava frases em francês, traduzindo-as, na mesma hora, em latim e, depois em espanhol para uma plateia internacional. Às duas da manhã, saltou de repente da cama e teve de ser levado de volta à força. Depois, rolou para o outro lado e ficou de pé no chão por alguns segundos, gritando: C'est ici le combat du jour et de la nuit".(Esta é a luta do dia e da noite.)

 

No dia 21, a Província de São Paulo reproduz, agora na primeira página, o telegrama publicado pela Gazeta, "verdadeiramente contristador" e teceu o seguinte comentário: "A existência de Victor Hugo não é só preciosa para a França, mas para todos os povos civilizados".

 

E, no dia 22 de maio o desesperado estado de Victor Hugo acenava não havia esperanças de que se salvasse. E, finalmente, no dia seguinte, deparamo-nos com a primeira manchete da Gazeta de Notícias, colocada no alto da primeira página e, em letras garrafais. In litteris: VICTOR HUGO De verre pour gémir d'airan pour résister. Homenagem da Gazeta de Notícias. (“Copo para gemer, latão para resistir").

 

Logo abaixo, ainda na seção "Telegramas", encontra-se o relato da morte do poeta: "Victor Hugo. Paris, 22 de maio. Faleceu Victor Hugo, à 1 ½ hora da tarde, depois de uma terrível agonia. Espalhou-se logo a notícia em boletins de quase todos os jornais, com largas margens negras. O Estado tomou a si a despesa do enterro do grande morto. O dia das exéquias é considerado dia de luto nacional. É quase certo que o parlamento resolverá que Victor Hugo seja sepultado no Panthéon. O enterro será civil, apesar da oposição do arcebispo de Paris”.

 

E, toda a primeira página é dedicada ao poeta: há um resumo de sua vida, uma descrição de seu estilo, um comentário sobre sua obra e, a seguir, a homenagem de várias personalidades cariocas. A Província de São Paulo, também na primeira página e em destaque, comenta a notícia da morte do escritor francês.

 

O telégrafo acaba de transmitir-nos a triste notícia da morte de Victor Hugo. Os telegramas destes últimos dias eram aterradores e deixavam antever este doloroso resultado. Acabou, pois, essa existência gloriosa e brilhante, gelou para sempre a mão que firmara as mais notáveis páginas literárias do século XIX, e todos os países civilizados cobrem-se hoje de luto pelo poeta imortal que era o orgulho da França e a admiração do mundo.

 

Morreu, porém, cercado de homenagens que nenhum monarca até hoje recebeu, morreu depois de haver assistido à sua própria apoteose e de ter visto curvarem-se ante os seus venerandos cabelos brancos todos os grandes da terra.

 

Victor Hugo era, para todos que estudam, o patriarca imponente das letras universais, o pontífice máximo da catolicidade inteligente./.../ Todas as lágrimas são poucas para chorar esse morto imortal./.../ Não nos permite o adiantado da hora darmos um estudo circunstanciado do grande gênio. Cumpriremos amanhã esse doloroso dever.

 

A Gazeta parecia trazer a homenagem pronta: na primeira página havia um poema de Joaquim de Siqueira, uma tradução de “Passeando pela manhã” de Arthur Azevedo, comentários de Taunay, Eunápio Deiró, Ferreira Viana e o poema 1802-1885 de Machado de Assis, no qual ele coloca o escritor francês ao lado de Homero, Voltaire e Shakespeare e demonstra nutrir um profundo respeito e uma admiração sincera por Victor Hugo.

 

Os jornais da época podem fornecer uma resposta a essa questão: nos dias subsequentes à morte do autor de Les Orientales; a Gazeta de Notícias e vários outros periódicos do Brasil inteiro, foram "bombardeados" por publicações de escritores inexpressivos, ansiosos por notoriedade, poemas de gosto duvidoso em memória do escritor francês, enfim, páginas e páginas escritas por pessoas de pouco ou nenhum talento que, aproveitando o espaço cedido pelo jornal e a notícia causadora de grande comoção em todo o país, desejavam se autopromover.

 

A Província de São Paulo fortalece essa convicção: no dia 24 de maio, publica, na primeira página, uma biografia extensa de Victor Hugo feita por Navarro de Andrade que, entre outras coisas, afirma:

“Diante do túmulo ainda aberto de Victor Hugo, diante do cadáver ainda quente desse homem que encheu o mundo com o seu nome em quase um século de existência é que se compreende que a morte, a verdadeira morte é o esquecimento./.../ Ao sentir aproximar-se o momento fatal da despedida, ele decerto não conheceu as dolorosas saudades do mundo, nem estremeceu ante as incertezas do futuro. Falsa ou não a imortalidade do além-túmulo, ele tinha segura a imortalidade desse nome que viverá com a França e além dela, como ainda vive Homero e o Dante, como viverá sempre Camões./.../ E nenhum defensor mais convicto nem mais corajoso do que ele; a reação não deu um passo sem que encontrasse o seu pulso de ferro a repeli-la, a tirania não ergueu a cabeça sem que encontrasse o seu pé que a esmagasse./.../ Ninguém o lê que não o admire, ninguém o ama que não lhe obedeça./.../ A França e Hugo formaram uma só entidade e ninguém falava desse grande país sem lembrar o seu primeiro cidadão”.

 

Na segunda página, “A Província de São Paulo” comenta ainda que as casas francesas da cidade haviam exposto a bandeira de sua nacionalidade com o sinal de luto.

 

Carneiro Leão, ao comentar a repercussão da morte de Victor Hugo, cita alguns textos publicados nos jornais: de Agapito da Veiga: "Cristo foi o cordeiro da humanidade, Victor Hugo foi o seu leão." de Luís Delfino: "Foi menos Deus que o Cristo e mais homem que ele." de Alfredo Conrado: "ele era um deus universal." de Artur Mendes: "As doces criancinhas. Que amavam tanto Hugo Soluçam coitadinhas. Por seu querido avô”.

 

Em São Paulo, senhores a favor da libertação dos escravos reuniram-se e resolveram homenagear o ilustre falecido fundando o Club Abolicionista Victor Hugo. A comunidade francesa mandou publicar uma carta em sua língua de origem na Província de São Paulo, convocando os admiradores do autor de L'Homme qui Rit para participar de uma comissão organizadora que lhe prepararia uma homenagem.

 

D. Pedro II, admirador profundo do escritor francês, solicita a Múcio de Oliveira que reúna em livro as traduções feitas por poetas brasileiros de poemas de Victor Hugo. O livro, denominado Hugonianas foi oferecido a Jeanne, neta do "gigante do século".

 

As homenagens se estenderam durante todo o mês de maio. Aguardava-se com grande expectativa o funeral e o enterro do Homem Oceano.

 

A partir desse dia, os jornais passam a comentar a polêmica envolvendo os funerais de Victor Hugo: o governo francês promulgou um decreto retirando ao Panthéon todo o caráter de edifício pertencente ao culto e destinando-o a "encerrar os despojos dos homens eminentes no caráter puramente civil" (A Província de São Paulo, 29/05/1885).

 

O mesmo decreto ordenava fossem os restos mortais do poeta dados à sepultura no edifício do Panthéon. O clero protestou contra esse decreto do governo, exigindo que a Igreja de Santa Genoveva mantivesse seus privilégios como templo católico.

 

Surdo aos protestos clericais, o governo marcou as exéquias para o dia primeiro de junho, segundo “A Província de São Paulo” de 30 de maio. O enterro do autor de Torquemada tornou se assunto polêmico e obrigatório.

 

Era preciso esperar que a lei completasse seu percurso pelas Câmaras. Enquanto isso, o corpo do escritor célebre entrava em decomposição. Trinta horas após sua morte, decidiu-se embalsamá-lo. Ainda faltavam vários dias para o funeral e a ideia de expor seu rosto à multidão foi abandonada.

 

Entretanto, a população queria ver seu ídolo e a insanidade começava a tomar conta de seus leitores: o católico Leon Bloy sugeriu fosse o cadáver do poeta espalhado pelas ruas para ser igualmente dividido por seus admiradores.

 

A ciência também quis a sua parte: pediu à família Hugo que liberasse o cérebro do gênio da literatura francesa para estudos importantes; diante da recusa, os fisiologistas atacaram tal postura egoísta e contentaram-se em estudar sua máscara mortuária, chegando à conclusão, entre outras coisas, de que sua orelha esquerda era mais alta que a direita e a famosa testa de gênio era consequência de uma calvície precoce.

 

Em 31 de maio, “A Província de São Paulo” publicou na primeira página a tradução dos principais trechos das obras hugoanas. O mundo aguardava ansioso as exéquias do ilustre morto. Nessa mesma noite, seu caixão foi depositado embaixo do Arco do Triunfo. O monumento estava coberto de negro, guardado por cavaleiros com tochas.

 

A véspera do enterro foi descrita como babilônica: lembrancinhas do escritor eram vendidas por ambulantes. Quatrocentas calças que "revestiram as pernas do maior poeta de todos os tempos" foram postas à venda por um senhor que afirmava ter sido seu criado. Bebia se muito vinho, cantava-se, reservavam-se lugares para ver o cortejo de perto.

 

A manhã de primeiro de junho de 1885, dois milhões de pessoas acompanhavam o enterro de Victor Hugo e janelas e sacadas e galhos de árvores foram alugados por exorbitantes valores e, gigantescos arranjos florais se espalhavam pelo caixão triplo. E, ainda, onze majestosas carruagens seguiam o cortejo e, tamanha opulência, contrastava com o carro fúnebre que o conduzia era aquele destinado aos pobres, uma carroça aberta, caindo aos pedaços.

 

No dia 3 de junho, depois do enterro, Machado de Assis escreveu "Bala de Estalo" em que se mostrou perplexo com os acontecimentos relacionados ao óbito do escritor francês, in litteris:

      "Ando tão atordoado, que não sei se chegarei ao fim do papel. Se escorregar, segure-me. /.../ li, nuns versos publicados em honra de Vítor Hugo, versos cheios de sentimento e vigor, entre os quais estes dois que me estromparam: Com suas filhas e netos. Levou a cruz ao calvário". "Como se vê, foi um suplício de família; mas, ainda sendo de família, todos os suplícios são lamentáveis. E aqui, a consternação foi imensa. Ver aquele grande homem, ladeado de duas moças e duas crianças, Calvário acima, para lá pôr uma cruz, é ainda mais doloroso que estupendo. E para que levaria lá aquela cruz, se não tinha de morrer nela? eis aí o que me pareceu requinte de malvadez. A compensação única de levar uma cruz ao Calvário é morrer nela. Deram ao pobre velho um suplício, além de coletivo, gratuito. Já me lembrou se o novo poeta apenas quis fazer uma figura. Em tal caso, desaparece esta segunda causa de atordoamento, para só ficar um desejo íntimo, que não hesito em tornar público. O desejo é que deixemos repousar o Calvário por algum tempo. Há já muito Calvário em verso e em prosa. Para que trocar este dobrão de ouro em moedinhas de níquel? é reduzi-lo a comprar cigarros".

 

A leitura dos jornais leva, portanto, à convicção de que a crônica machadiana do dia 28 de maio não desrespeitou a memória de Victor Hugo. A ironia, o cinismo, o comentário crítico, são dirigidos aos aproveitadores, àqueles cujo desejo era servir-se da morte de um grande escritor para obter sucesso.

 

A irritação do cronista é compreensível: "Vamos acender os charutos no castelo de Hugo enquanto ele arde (...) Incêndios duram pouco e os fósforos são vulgares". Ele não se sente obrigado a usar de ironia ao comentar o falecimento do escritor francês porque era isso que se esperava de um colaborador da Gazeta de Notícias; ao contrário, reage com indignação: "sei que resta a polca, que não há de perder um petisco tão raro como a morte de um poeta".

 

Quando falou da "basbacaria humana", refere-se a esse tipo de comportamento, o de promover-se às custas do talento alheio, buscando a fama e a notoriedade por meio de poemas medíocres publicados na seção "A pedidos".

 

Ao colocar no mesmo nível a notícia da morte do poeta e a liquidação da alfaiataria Estrela do Brasil, o narrador rebaixa a importância da primeira e releva a da segunda. Mas, não o faz para mostrar o seu ponto de vista.

 

O acontecimento, certamente, despertou no cronista uma grande comoção. Ele fala, porém, da grande sensação que ele provocou nas folhas públicas. Tantos comentários, tantas homenagens...seriam essas pessoas leitoras da obra hugoana? O colaborador da Gazeta mostra que, ele pelo menos, conhecia muito bem a obra do autor de Notre Dame de Paris.

 

Não por acaso, cita versos conhecidos que pertencem a coletâneas diferentes, indicando uma leitura não apenas assídua, mas variada. Todos os poemas citados eram famosos e os leitores da época podiam reconhecê-los sem dificuldade.

 

O que faz o indignado cronista? Compara a morte do grande vate francês à liquidação da alfaiataria "Estrela do Brasil" e remete cada verso precioso de Victor Hugo a uma parte da vestimenta, sugerindo comentar a obra hugoana com a mesma indiferença com que se discute o preço de um tecido.

 

Lélio ataca ainda a polca , "que não há de querer perder um petisco tão raro como a morte de um grande poeta" e sugere títulos que trouxessem "o pico do escândalo".

 

Já em 1885, o escritor carioca já era reconhecido nacionalmente e respeitado por seus romances, poemas e contos. Morto José de Alencar, ele se tornou o "patriarca" da jovem literatura brasileira. Victor Hugo exercia esse papel na França, de modo que Machado de Assis busca resgatar a importância do fato, sem o oportunismo dos admiradores de ocasião. Ele não precisava tirar proveito da morte do poeta francês para aparecer nas páginas dos jornais.

 

A postura, entretanto, revela algo mais: por ocasião das mortes de Casimiro de Abreu, Manuel Antônio de Almeida, Paula Brito e Gonçalves Dias, o autor de Memorial de Aires manteve-se quase em silêncio, comentando de maneira breve e discreta as notícias.

 

Em crônica escrita em 19 de março de 1889 para a Gazeta de Notícias, Machado de Assis expõe a sua visão a respeito da maneira pela qual lida com a morte de alguém famoso:

    "Bons Dias! Faleceu em Portugal o Sr. Jacome de Bruges Ornellas Ávila Paim da Câmara Ponce de Leão Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2º Conde da Praia da Vitória, 2º Visconde de Bruges. Quarta-feira, na igreja do Carmo, diz-se uma missa por alma do ilustre finado, e quem a manda dizer é seu amigo - nada mais que amigo gratíssimo à memória do finado. Nenhum nome, nada, um amigo; é o que leio nos anúncios.

Quem quer que sejas tu, homem raro, deixa-me apertar-te as mãos de longe, e não te faço um discurso, para não te molestar; mas é o que tu merecias, e mereces. Singular anônimo, tu perdes um amigo daquele tamanho, e não lhe aproveitas a memória para cavalgá-lo. Não fazes daqueles títulos e nomes a tua própria condecoração. Não chocalhas o finado à tua porta, como um reclamo, para atrair, e dizer depois à gente reunida: - Eu, Fulano de Tal, mando dizer uma missa por alma do meu grande amigo Jacome de Bruges Ornellas Ávila Paim da Câmara Ponce de Leão Homem da Costa Noronha Borges de Sousa e Saavedra, 2º Conde da Praia da Vitória, 2º Visconde de Bruges./.../ É assim, nobre anônimo; um morto ilustre é um naco de glória que não se perde; e além disso, é uma ocasião rara, e, às vezes única, de superar os contemporâneos".

 

Machado de Assis era leitor e admirador de Victor Hugo. Os versos citados por ele indicam leitura constante, reflexiva e respeitosa do criador de Esmeralda e foram memorizados porque fazem parte de uma biblioteca exigente, na qual também se encontram Shakespeare e Dante. Ele demonstra, em 1802-1885, ter o poeta francês o mesmo valor do grande dramaturgo inglês e do brilhante escritor florentino.

 

A crônica escrita em 28 de maio daquele ano é uma manifestação indignada contra os que, sem talento, ousam se promover às custas de quem nem chegaram a conhecer e admirar profundamente. E a compreensão de sua postura só pode ser alcançada por meio da leitura dos periódicos da época.

 

A segunda crônica data de 10 de agosto de 1885. Eis alguns trechos desta outra "Bala". Permita o Rio de Janeiro que lhe chame paxá. É um nome como qualquer outro; mas no caso especial em que nos achamos é o que melhor assenta; lembra uns versos célebres de Vítor Hugo.

 

Qu’a-t-il donc le pachà? Acho-o preocupado. Não é certamente com o Sr. padre Olímpio Campos, que aceitou o desafio do Sr. José Mariano, e venceu-o ontem, em plena câmara; porquanto, o distinto deputado de Pernambuco tirou de dentro de um imposto inconstitucional nada menos que a reforma das eleições, o trabalho livre, Jorge III, Nestor, o senado, o poder pessoal, e o próprio imposto com grande espanto dele e meu; mas o ilustrado deputado de Sergipe fez mais. (...)

 

Que será então que preocupa tanto ao paxá? Que é que lhe ensombra a Moisés, não é o estilo econômico do 17º Distrito, não é também a reforma servil, nem o estado da fazenda, que diabo será que o faz sorumbático e tonto? Coisas de paxá: - perdeu o tenor Tamagno. Son tigre de Nubie est mort. (Seu tigre núbio morreu).

 

Francesco Tamagno foi um dos maiores tenores do século XIX. Contratado pelo maestro Ferrari, veio ao Brasil pela primeira vez em 1878, retornou no ano seguinte e ainda mais três vezes, em 1881, 1882 e, finalmente, em 1885. Seus excepcionais dotes vocais transformaram-no em um dos intérpretes preferidos de Verdi, que o escolheu para os papéis de Ricardo em Un ballo in maschera ( Um baile de máscaras), Radamés em Aída e Otelo, na ópera do mesmo nome, numa representação que lhe valeu um sucesso triunfal. Morreu aos 65 (sessenta e cinco) anos na Itália.

 

A Companhia de Ferrari veio ao Brasil pela primeira vez em 1876. A amizade entre o maestro e Machado de Assis era, porém, muito mais antiga. Segundo Lafayette Silva, a estreia do escritor fluminense no teatro deu-se não com uma comédia, mas com uma "opereta em três atos traduzida do francês, Pipelet, cuja música era do maestro Ferrari", milanês nascido em 1833 e falecido em 1907, contratado, segundo a Gazeta de Notícias de 1º de setembro de 1883, pelo Teatro Scala de Milão, onde realizaria a famosa representação de Otelo com Tamagno interpretando o papel-título em 1887.

 

O cronista fluminense refere-se ao amigo italiano várias outras vezes e está indignado ao comentar a notícia de que o maestro não viria naquele ano de 1884 ao Brasil e Tartini o substituiria: "Este Tartini não inventou nada, mas tão depressa soube que Ferrari não vinha, deu-se pressa em substituí-lo".

 

O injustiçado Tartini não retornaria no ano seguinte. Portanto, em 1885, a Companhia do Maestro Ferrari que já se ausentara no ano anterior, prometia trazer o grande tenor Tamagno e, a sua vinda lotou completamente o Teatro Imperial Pedro II. E, a temporada de sucessos só recebeu elogias da imprensa brasileira.

 

Entretanto, a Gazeta de Notícias no dia 9 de agosto de 1885 apresentou nota final onde afirmou que o tenor Tamagno deixou de cantar perfeito, e já constava estar desgostoso com a empresa. E, no Diário do Brasil de 19 de agosto confirmou a substituição de Tamagno por Marconi na apresentação da ópera Aída .

 

Concluiu-se, por meio das notícias dos jornais, que o tenor se desentendeu com Ferrari e abandonou a companhia do maestro italiano. Por isso, quando o colaborador da Gazeta de Notícias afirmou estar o Rio de Janeiro triste porque "perdeu o tenor Tamagno", não se referia, em absoluto, à morte do cantor lírico, mas a seu desligamento da "troupe" de Ferrari.

 

Para comentar a "perda do tenor Tamagno", Lélio cita versos retirados do poema "La douleur du pacha" (A dor do Paxá) de Victor Hugo, escrito em 1827 e pertencente ao famoso Les Orientales (Os orientais).

 

O poema de nove estrofes descreve a tristeza do sultão que, embora rico (son aumône est bien pauvre et son trésor bien riche) (suas esmolas são muito pobres e seu tesouro muito rico), mostra-se sombrio e amargurado. É possível dividi-lo em duas partes: nas cinco primeiras estrofes busca-se descobrir a causa da dor do paxá.

 

Os versos introdutórios a essas estrofes perguntam: "Qu’a donc l’ombre d’Allah?", "Qu’a-t-il donc le pacha, le vizir des armées?", "Qu’a-t-il donc?", "Qu’a donc le doux sultan?", "Qu’a donc le maître?" (“O que há de errado com a sombra de Alá?”, “O que há de errado com o paxá, o vizir dos exércitos?”, “O que há de errado com ele?”, “O que há de errado com ele, o gentil sultão?” , “Qual é o problema com o mestre?”)

 

Os versos seguintes levantam hipóteses variadas, porém, superficiais: estaria o sultão indignado porque seu banho fora contaminado com uma essência grosseira? Estaria ele enraivecido porque se perdeu o vaso com os perfumes que o rejuvenescem? Estaria ele furioso por ter surpreendido seu filho com sua favorita?

 

As quatro últimas estrofes desmentem essas hipóteses e descartam até as que seriam justificáveis e importantes, como a amargura diante da Grécia incendiada, o remorso pelo assassinato de crianças ou a tristeza diante de cidades destruídas. Por que estaria, então, deprimido o paxá?

 

O último verso esclarece a razão de seu pranto: "Son tigre de Nubie est mort". A crônica possui idêntica estrutura. Numa primeira parte, o escritor fluminense chama o Rio de Janeiro de paxá, pois o considera tão preocupado como o sultão do poema francês.

 

Em busca da compreensão de tamanha tristeza, o cronista cita o sétimo verso do poema de Victor Hugo ("Qu’a-t-il donc le pacha?") e inicia um parágrafo em que apresenta uma possível razão para a melancolia da cidade: uma discussão na câmara entre dois adversários políticos, o Pe. Olímpio de Sousa Campos, membro do Partido Conservador e deputado por Sergipe, e José Mariano Carneiro da Cunha, deputado liberal por Pernambuco e companheiro de Joaquim Nabuco na campanha abolicionista.

 

Na câmara discutia-se, então, o projeto Saraiva, que libertaria os escravos sexagenários.

 

Não satisfeito, o cronista cita o décimo-nono verso ("Qu’a donc le doux sultan?") para levantar nova hipótese: estaria o Rio de Janeiro indignado com a declaração do latinista Castro Lopes relativamente a Moisés?

 

O famoso astrônomo e homeopata, afirmara nada saber Moisés a respeito do verdadeiro dilúvio “e isto por não ter conhecimento de geologia e física, nem a menor noção da evaporação atmosférica" Finalmente, a última tentativa para elucidar o problema: ele cita o primeiro verso do poema ("Qu’a donc l’ombre d’Allah?") e propõe ser o motivo para tal preocupação um erro de sintaxe cometido pelo jornal Décimo-sétimo Distrito .

 

O jornal mineiro quis "poupar algumas palavras" para dar uma notícia, o que resultou num "estilo econômico" bastante obscuro e deselegante.

 

A segunda parte nega todas as possibilidades apresentadas e elucida o mistério: a cidade está taciturna porque "perdeu o tenor Tamagno". Cita, finalizando, o último verso do poema francês: "Son tigre de Nubie est mort".

 

A comparação da estrutura formal dos dois textos leva à conclusão de que a crônica se inspirou no poema de Victor Hugo:

Poema Crônica

A tristeza do sultão A tristeza do Rio de Janeiro

Apresentação de hipóteses fúteis Apresentação de hipóteses

Negação das hipóteses Esclarecimento da tristeza

Perda do tigre Negação das hipóteses

Esclarecimento da tristeza Perda do tenor

 

A citação teve, portanto, um papel determinante na elaboração da crônica. Os dois textos foram construídos sobre a mesma base estrutural; todavia, seu tom é diverso e sua finalidade, totalmente outra. Isso decorre da diferença de gêneros.

 

Embora Victor Hugo afirme ter escolhido o tema de Les Orientales ao acaso, "en allant voir le coucher du soleil" (vou ver o pôr do sol) e que nessa obra sejam privilegiados o sonho, a fantasia, as palavras sonoras, a luz e as cores, pode-se notar uma preocupação com questões profundas como o contraste entre a miséria e a riqueza, a piedade pelos humildes e o sentimento humanitário.

 

Já na crônica irreverente, o tom é outro. O vocabulário utilizado é leve e coloquial. Expressões familiares como "estou com a mão na massa", "ouviu cantar o galo sem saber onde", "que diabo será que o faz sorumbático e tonto", mesclam-se aos versos densos do poema francês sem a menor cerimônia.

 

As hipóteses levantadas pelo cronista para esclarecer a tristeza do Rio de Janeiro são divertidas e comentadas ironicamente. A discussão sobre o elemento servil entre o Pe. Olímpio Campos e o deputado José Mariano só interessa pelo que ela tem de hiperbólica e farsesca.

 

Nada resta das antíteses do poema francês, da atmosfera sombria e terrificante. Ao contrário, o leitor se depara com a vivacidade do colaborador das "Balas de Estalo", mesmo sendo grave o assunto.

 

Evidentemente, a poesia sofre um "rebaixamento" na passagem para a prosa galhofeira e coloquial da crônica.

 

Os versos hugoanos devem emocionar; enquanto o texto jornalístico tem por obrigação divertir os leitores. O livro permanece na estante, para ser consultado, relido; o jornal tem duração efêmera. Essa passagem, entretanto, é tão bem construída, que um livro exótico como Les Orientales é retomado e adaptado, podendo descrever a realidade imediata de um país periférico do Ocidente.

 

 

 

 

Referências

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas. Rio de Janeiro: Jackso, 1962.

ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas de Lélio. org. Magalhães Jr., s/d.

ASSIS, Joaquim Maria de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.

CARNEIRO LEÃO. Victor Hugo no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960.

GOMES, Eugênio. Espelho contra Espelho. São Paulo: IPE, 1949.

HUGO, Victor. Les Orientales/ Les Feuilles d'Automne. Paris: Gallimard, 1988.

SILVA, Lafayette. História do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: MEC, 1938.

 

 

 

 

 

 

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 09/06/2024
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