EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE (LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (XI)
EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE
(LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (XI)
A LIÇÃO mais impressionante de Jesus Cristo de Nazaré talvez seja esta: “Se Eu Não Sofro, Como Posso Ter Empatia Com Os Que Sofrem??? Os Que Sofrem São Meus Semelhantes. Como Posso Combater Os Que Os Fazem Sofrer, Se Não Sofro Com Eles, Se Não Conheço A Intenção De Seus Inimigos, Os Inimigos Da Espécie Sapiens E Das Espécies Que A Antecederam, Suas Limitação São As Minhas, Se Não Fossem, Como Poderia Eu Conhecê-las”???
EU, DECIO, não sou masoquista nem sádico, não provoco sofrimento em ninguém que não seja eu mesmo. E me envergonho dos sofrimentos que me causo. Minha conexão com a criação devo ao casal de primatas que me deu origem. A ênfase da origem vai tanto para ela, quanto para ele. Em verdade vos digo: nem ela era ela, nem ele era ele. Ela não queria ser uma dona de casa medíocre, mas era. Ele não queria ser um dentista de interior do país, um pai pedófilo, mas era.
ELA QUERIA ser bailarina do Balé Bolshoi. Ao casar era uma mocinha magra e tinha sonhos de voar o corpo esguio nos palcos ao som de O Lago dos Cisnes. Talvez por isso, por ter se transformado numa dona de casa, mulher de um dentista prosélito, aliado dos demônios da maçonaria, um dentista que queria ser médico, ambos vivenciando um larbirinto de hostilidades, ela olhava para si própria e, ao avistar o corpo grande, gordo, deformado, lamentava com raiva ter perdido a vida ao casar com um pedófilo que ela mesma tinha ajudado a criar.
SIM, ELA tinha nutrido e sustentado a fragilidade, as carências, as indecências do coitado do marido. Ela pariu vinte e cinco vezes e dizia, orgulhosa e cheia de si, que queria os vinte e cinco filhos todos vivos. Sobreviveram aos partos não abortados, dez, dos quais sou o primogênito. Ambos sabiam que eu era uma criança indomável, o casal não poderia simplesmente me ignorar. Sabiam que os espancamentos, os chutes, murros, as cabeçadas no chão duro de cimento da sala, no qual meus ombros frágeis eram puxados, insistentemente, para frente e para trás, a cabeça ressoava as batidas doídas... Euzinho, num desses confrontos com o chão, poderia simplesmente rachar o crânio.
MAS O marido da mulher que o enchera de responsabilidades que ele não poderia dar conta, tinha de mostrar que era home, que era home com agá, e para isto acontecer a vítima tinha de ser eu. As pessoas não queriam presenciar o massacre, se recolhiam na cozinha, nos quartos, saíam da casa e permitiam o estrago acontecer. Passado um tempo, meu corpo abandonado no chão ficava. Ninguém ousava me socorrer ou me levantar. O dentista possesso voltava ao consultório que ficava na entrada da casa. Sentia-se o dono da cocada preta. Sentia-se home com agá.
EU NÃO havia morrido. Levantava-me zonzo. Os joelhos dobravam e eu caía no chão outra e outra vez. Por que aconteciam essas covardias comigo??? Simplesmente porque eu contestava as tentativas verbais do home com agá, de me mandar fazer isso ou aquilo outro, quando eu estava a fazer as lições de casa. Quando eu tentava me concentrar nos estudos, na leitura de livros. Ele não queria isto, que eu me tornasse um garoto, um rapaz erudito, porque isto me concederia a oportunidade de ver o quanto ele e a mulher estavam errados ao acumular os filhos como se estivessem em um campo de concentração familiar nazista. A mulher se justificava dizendo que o Papa no Vaticano proibia o aborto.
EM REALIDADE ela não tinha a mínima convicção religiosa. Na verdade, ela se sentia empoderada quando estava grávida. Ela era a senhora da vida, a deusa da fertilidade, a rainha da primavera, a Vênus de Willendorf, esculpida há 25 mil anos antes de Cristo, no paleolítico, divindade pagã da Pré-história. Quando ela estava gestante entrava em contato com o mundo da mitologia, das deusas da fertilidade, Freia, Ísis, Juno, Hera, Demeter, Afrodite. Certamente ignorava Jaci, que na mitologia tupi-guarani protetora dos amantes e das mulheres que reproduziam.
MAS A realidade de que ela era uma dona de casa deformada pelas leis da entropia, era uma evidência incontestável. A aleatoriedade havia dispersado sua matéria e a desordem de sua energia se estabeleceu no processo espontâneo de um estado físico e mental de desequilíbrio. A vizinhança do meio social em que subsistia, interagia enquanto força coletiva de intensificação de seus delírios, de sua antiga magia, de seus rituais internos e alucinações que a tomavam de roldão, precipitando-a nos sobressaltos da alienação que dela tomava de conta quando pejada estava, quando prenhe.
MAMA LUCY atualizada na figura trágica de minha mãe, não estava nem aí para minhas necessidades de crescimento. E o movimento do Inconsciente Coletivo Familiar, favorecia toda e qualquer motivação que contribuísse com a deterioração do desenho esboçado na ilustração caseira de minha existência, enquanto filho e irmão na agremiação doméstica, na intimidade da família. Como poderia eu sobreviver com dignidade numa família em que eu estava sobrando???
QUALQUER MÍNIMO investimento em mim era visto como se eu estivesse traindo a integridade dos demais membros da família. Como se eu estivesse a roubar deles a sobrevivência carente de cada um deles. A família queria que eu me refugiasse na degradação de minhas melhores possibilidades. Eu era o que sobrava em todas as avaliações familiares. Eu devia, mais cedo ou mais tarde, aceitar a condição de marginalizado. Um marginal que sobrava na convivência mórbida entre familiares.
MINHA MÃE, tal qual aquela fêmea Australopitecus de há 3,2 milhões de anos, havia sofrido bullying e abusos na infância pobre, faminta e infame. Casou com um home com agá, da espécie sapiens, um sujeito fraco, delirante, que nunca passou da condição de moleque, apesar de haver se formado em odontologia, casado com essa herdeira das mutilações sofridas por Lucy. Ou seria Lúcyfer???