Banho de Chuva

Quem viveu, não há como não lembrar...

As nuvens no céu aos poucos iam se aglomerando, o calor aumentando, os urubus lá no infinito de onde a vista alcança cirandando...uma ventania levantava a poeira e fazia as árvores valsarem como num quinze anos. Meu avô certeiro, de porta aberta apreciando a movimentação dizia:

- Wilse, acho que vai cair um pampeiro.

Ela, de sua rede , vira de lado , quase sonolenta sentenciava:

- meu Deus...vai chover. Tomara, que as vizinhas tenham conseguido enxugar as roupas no sol. Não é fácil a vida de lavadeira. Ainda bem, que as minhas já estão secas, aqui dentro.

Enquanto eu, brincando com o meu carrinho de lata já ouvia o aviso dela para entrar.

Num instante de silêncio repentino, rompido passo a passo pelas folhas secas rolando no chão, se ouvia também o canto dos pássaros pressageando a tempestade, que já caia numa certa velocidade, com aqueles imensos pingos de água a repicar nas telhas de barro e no giral de zinco, como a querer furar aquela barreira... blam, blam, blam, que empatava de cair diretamente na terra.

Caindo uniformemente, desriçava suave sobre os seios das árvores a nos provocar.

Tão intensa tornava, pingo a pingo vindo pela calha das telhas, que enchia o camburão até a boca.

Era chuva chovendo no terreiro, sapo coaxando ao lado do pinteiro, passarinhos a bessa, serestando, balançando as asinhas... nossos olhos aguçados vendo a água e a terra se misturando, com aquele cheiro de mato ascendendo...

Ai que vontade de se molhar.

Sem mais aguentar, corri a minha avó e pedir permissão, que de imediato foi negada.

Quando ouvi a molecada gritando na papagaiada, correndo no beco, de um lado para o outro a mergulhar no camburão acesos de água, quando vi os barquinhos de papel naufragarem na entrada ... não aguentei.

Corri até meu avô e implorei, bem na hora em que os trovões conversavam.

Ele me olhou como senhor das minhas vontades e como bom entendedor da matéria, não teve como me negar a permissão.

Isso sim, era liberdade... sair na chuva com os braços abertos, como avião numa viagem.

Sair na chuva, naquele carnaval de alegria na cidade...

Aliançando vontades , sentindo na pele o alívio da necessidade.

Corri solto no chão das vontades a experimentar cada biqueira das telhas daquelas casas.

Como numa jaula de espaço, ia e voltava, trocava abraços e gritos com a criançada.

Naquela festa com requintes inusitados, a endumentaria era simples...pisavamos na terra com os pés descalços, sorriamos e abríamos inúmeras vezes os braços e a correr um atrás do outro sem identidade mergulhavamos de novo e de novo naqueles imensos camburões até bater de água.

Depois saíamos gritando a plenos pulmões, como que uivando nosso momento de felicidade.

Com tão pouco, corriamos e corríamos. Brincávamos e brincávamos de qualquer coisa, mergulhavamos no sonho da idade, precisando apenas da criatividade.

Pingo a pingo, a chuva ia minguando, o frio aliciando nossos corpos franzinos, as raízes da noite se assentavam no quarto crescente, que confundia a despertar a cabeça, quando chamavam a gente.

Encolhidos, feito passarinhos vencidos começávamos a rumar pra casa, pois o banho de chuva terminara.