Tinha até receio da morte. Mas depois que conheci o Sinval, sublimei. Que coragem a dele! Não fosse a rasteira do tempo, o abraçara...

 

Aos 92 anos exibia orgulhoso sua trajetória: três AVC's isquêmicos, embolia pulmonar grau III, dois AVC's hemorrágicos, ponte safena, marca-passo, enfizema pulmonar, perda total da visão esquerda, perda de 52 % da audição e 27 medicamentos diários, entre os quais, desponta magnânimo o importado da Suécia.

 

- Pelo menos posso pagar, dizia ele.

 

Mas de um tempo pra cá, o homem cismou que tinha recebido a visita da morte e que estava sob aviso.

 

Após ser hospitalizado com uma grave infecção urinária e gozar de traiçoeiras noites de dor e desespero, o Sinval teve uma visão do futuro: vou morrer!

 

E quando a alta veio, "preparar-se para morrer" virou meta.

 

Como todo planejamento demanda estudo e energia e a lógica nunca o acompanhou na vida terrena, debruçou-se nos estudos. O que era preciso fazer antes de morrer?

 

Viajar pelo mundo não era uma opção devido às limitações adquiridas ao longo da trajetória quase centenária.

 

Nem comprar o melhor carro, pois, sua carteira de motorista (vencida há mais de 10 anos) e a proibição de dirigir por infração antiga de trânsito, não permitiriam.

 

Então, decidiu ele, preparar-se para o seu funeral. Sim! Como se fosse um evento social de grande impacto e valia. E a obsessão começou...

 

Como nunca foi santo, religião era um assunto que evitava, apesar de ter sido criado por uma família cristã.

 

Diante da potencial morte preferiria ele um rito funerário tradicional sob o pretexto religioso de que" do pó vim, ao pó voltarei" ou "ainda "do pó vim, voltarei em cinzas"? Esse era o mote que o conduzia.

 

Se apegado fosse à crenças religiosas como o Cristianismo e o Islamismo, por exemplo, cujo juízo final é premissa de ressurreição, optaria por uma sepultura tradicional, uma forma de preservar o corpo para a ressurreição futura.

 

Mas aquela nunca seria sua primeira opção. Se decidisse manter a raiz cultural e carregasse a tradição de honrar os seus antepassados? Ao menos, daria tempo de se haver com um dos tios, com o qual disputou terrenos herdados e foi taxativo:

- Família, família. Negócios à parte.

O tio perdeu tudo, e um pouco de dignidade. Depois disso nem passava defronte a sua casa. Seria o momento de reconciliação?

 

Pensou ele: E se pudesse oferecer uma espécie de conforto emocional para os meus descendentes? Um jazigo num cemitério familiar seria uma boa alternativa. Afinal, uma vez que a porta se abrisse a conexão física permaneceria. E como a morte é certeira, de tempo em tempo alguém ocuparia o espaço. No fim, o custo benefício lhe parecia ótimo.

 

Alem do mais, tinha padre Lucindo... Pensou ele. Sempre solícito, mantinha apoio religioso incondicional à família. Até mesmo quando andou "pulando a cerca".

 

- Os meus filhos ficariam mais confortáveis se adquirisse um pedacinho do céu de posse da igreja. Mas será que vale a pena amontoar o meu corpinho naquele cubículo minúsculo de uma sepultura perpétua? Além do mais, o Nersol reclama, desde a juventude, dos escorpiões que lá habitam. É, me parece um pouco doentio negligenciar essas questões de saúde publica.

 

Tudo bem que cada pessoa tenha o direito de escolher o rito funerário que melhor se enquadre na sua histórica moldura da vida, o tradicional ou a cremação são uma opção, e as crenças individuais e as circunstâncias da família seriam a única saga.

 

Mas o Sinval queria mesmo era causar, sentou-se à mesa da cozinha (diante da árvore de jabuticaba que o seu avô plantou) e começou a escrever:

 

1- Se,  e somente se, a alma for separada do corpo na hora da morte? Cremar seria a opção mais rápida para assumir outra vida ou mudar de esfera?

 

2- Se o fogo é vida e se a Fênix se reconstruiu após o caos, a cremação não seria uma espécie de renovação? Um recomeço após os destroços? Assim a alma e o corpo se separariam e cada um assumiria o seu posto? Atraente isso *

 

3- Apesar do valor exorbitante cobrado para uma potencial cremação, dependendo da circunstâncias que a morte escolher para me carregar, talvez seja uma opção viável.

- Quem sabe não deixo escrito e assim obrigo os sucessores a "tirarem o escorpião do bolso"?

 

Posso até ser morto, mas idiota, não! Abaixo à opressão! O plano de saúde já é um seguro de morte bastante exigente. Quem ficar que pague. Pensando bem, se estivesse nas Ilhas Gregas e "abotoassem os botões do meu terno" o caro seria o mais barato. Há distâncias que para serem superadas, gastariam alguns "rins". 

 

4- O meio ambiente agradeceria caso optasse pelo crematório. Quer alternativa mais sustentável que não gastar espaço, não poluir o solo e, por fim, não ser comido pelos vermes? A cadeia alimentar ficaria desnuda. Mas e daí, se já morri?

 

Mas havia naquele homem obsessivo pelo funeral, uma inquietação. A perspectiva religiosa não era suficiente para que tomasse uma decisão tão importante. Tampouco as questões práticas ou socioambientais, era preciso mais. Então:

 

- Alexa, qual a perspectiva filosófica dos ritos funerais?

 

- De acordo com "filosofia em debate" a escolha entre o sepultamento tradicional e a cremação pode ser influenciada por diferentes correntes de pensamento. Alguns filósofos creem que se trata de uma forma de aceitar a transitoriedade e impermanência da vida.

Já outros, enfatizam a importância de preservar a integridade do corpo como símbolo da identidade e continuidade pessoal.

 

- Alexa, quem crema o corpo depois da morte, recebe outra chance de receber um novo na ressurreição?

 

- Não encontrei nenhum registro sobre chances após a morte.

 

- Alexa, o que acontece com o corpo quando se morre?

 

- De acordo com a Ciência da Vida quando se morre, o corpo entra em colapso e há falência múltipla dos órgãos.

 

Depois de ouvir a resposta da Alexa, Sinval parecia reflexivo. Levantouse da cadeira, rasgou os papéis e foi sentar-se à sombra da jabuticabeira.

 

Na árvore frutífera carregada (assemelhando-se a olhos nus), viu-se em genealogia: quantos troncos são necessários para manter um galho? Passou horas em silêncio até que o pôr do sol trouxe consigo o vento, empurrando-o para o interior do imóvel.

 

Decidiu ligar para o filho. Mas não atendeu. Sempre ocupados, cada um cuidando de sua própria vida. Sentiu um vazio.

 

Foi até o portão onde avistou Solange, sua vizinha, uma design de interiores, bem humorada, com quem batia altos papos.  Provocou-a dizendo que caso morresse, caberia a ela carregar sua coroa de flores.

 

- Deus me defenda, Seu Sinval. Não tem mais esse negócio de velório. O povo bebendo o morto e o transformando em santo: todo mundo que morre é bom. Quanto menos cortejo? Também pudera, se pecado pesa... Lembra do caixão do Seu Otávio? Espatifou. E o senhor é tipo a princesa Elizabeth II: vai ano e volta, e a vida continua. Eu duvido que morreu de verdade. Eu mesma já matei o senhor umas sete vezes. Se bobear, estou na sua frente na temida fila.

 

Brincadeiras à parte, o Sinval jamais aceitaria ser carregado. Mas nunca tocou no assunto com a família.

 

No dia seguinte, dia da comemoração da Independência dos Estados Unidos, Sinval ligou a televisão para assistir ao jogo do Brasil x Sérvia, nos amistosos para a Copa do Mundo. 

 

Quando o Brasil fez o primeiro gol, ele eufórico, levantou-se para comemorar o feito, apressadamente, e viu-se zonzo, a pressão arterial baixou e caiu da altura do sofá, batendo a cabeça na quina do aparador. Suspirou...

 

A família reunida, tentava entender como a morte poderia ser tão tola a ponto de pegá-los de surpresa. Pensaram que morreria em tantas outras circunstâncias. Dividiram os bens, prepararam o terreno e, quando enfim tiraram os olhos dele, se foi.

 

E na cozinha, a discussão residia em qual seria o rito funerário a ser seguido. O pai, em vida, nunca expressou seu desejo.

 

- Vamos cremar? - disse Eliza.

- São 12 mil reais, Eliza. -responde Deniels.

- Não! O corpo é uma extensão da alma, é preciso preservá-lo. -pontuou, Cris.

- Vamos aproveitar o ensejo para homenagear nosso querido pai. Certamente, gostaria de um cortejo fúnebre simples, a pé, numa celebração de corpo presente emocionante, na Igreja da Luz e um enterro no Jazigo da família. Faremos uma procissão com as coroas de flores e o sepultaremos ao som dos sinos da catedral. -propôs Pedro.

- Que assim seja. -disse Eliza.

- Tudo bem. -disse Cris

E Daniels fez um sinal de concordância.

 

E enquanto os sinos tocavam, a coitada da Solange estava irriquieta, camuflada atrás de uma coroa que dizia: 

- As palavras de quem morre jamais serão esquecidas...

 

E o Sinval foi sepultado. Rindo alto por causa do medo da Solange e do auto-benzimento por ter falado das 7 vidas.

E certo de que seus filhos, apesar dos laços que os uniam, nunca o (re)conheceram... "O óbvio tem que ser dito..." 

 

Verdade ou não essa história da visita da morte ao Sinval, o inusitado foi que, ela cumpriu a promessa!

Mônica Cordeiro e Júlio César Fernandes
Enviado por Mônica Cordeiro em 06/06/2024
Reeditado em 07/06/2024
Código do texto: T8079945
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.