Desabrigo constante
Já havia atravessado noites de baixa temperatura várias vezes. Em São Paulo é frequente que, por meio de frentes frias, a temperatura caia bruscamente. Nessas ocasiões, o concurso de uma sopa quente - oferecida por alguma entidade de caridade ou até mesmo pelos agentes da prefeitura -, uma doação de um agasalho mais quente ou um cobertor e até mesmo o abrigo de uma igreja ou das estações de metrô para passar a noite, todas essas coisas ajudava a atravessar as noites frias.
Ocorre que seu corpo, cansado de tantos dias frios que passava e de tanta friagem de noites intermináveis, já não tinha mais a resistência de antes. Já vinha mais tosse, mais dor de cabeça, mais tontura e, por vezes, febre. Estava perambulando pelas ruas há seis anos, não conseguia pagar mais um quarto, que seja de pensão, a partir dos quarenta e quatro anos. Os cinquenta anos chegara e, com o fim de sua década de quarenta, foi com ela a ilusão de que um dia sairia das ruas e entraria para um teto, pelo menos para dormir.
Essa desilusão o deixou mais abatido e já não se alimentava como antes. O cansaço da vida, do infortúnio e da solidão, agora cada vez com menos esperança de mudar sua sorte, o abateu sobremaneira. Pedia a Deus que, já que o castigava dessa forma, retivesse o quanto possível, a chuva e o frio, pois sentia, com mais dores e menos resistência, as mudanças de tempo.
Os pedidos não foram atendidos de maneira suficiente, pois, de maneira inflexível, o frio apareceu numa noite de maneira quase abrupta. Quando caiu a noite a temperatura estava em trinta e três graus, foi para trinta e dois na hora seguinte, depois, trinta, vinte e sete, vinte e quatro, vinte, quinze e, de repente, baixou para nove graus.
Havia tomado uma cachaça assim que a temperatura foi baixando, porém, recusou a sopa quente, não estava com vontade de comer, só de chorar. Recordou seus pais, seus irmãos. Foi tomado por um sentimento de criança, contra todas as leis da física, da história e do universo, teimou em querer voltar o tempo, estar naquela casa onde viviam quando criança e imediatamente venderam quando seus pais se foram para sempre.
Não percebeu quando a temperatura chegou aos quinze e logo aos nove graus e começou a tremer, no entanto, a falta de ânimo para procurar um abrigo e a vontade de não fazer nada para se proteger o tornou inerte. Já havia tido tremores de frio outras vezes, no entanto, esses tremores haviam passado e o corpo havia recuperado sua capacidade de esquentar. Contudo, dessa vez, sentiu calafrios e os calafrios provocaram suores que o fez pensar que os tremores não continuariam, o corpo estaria se recuperando.
Lembrou-se, então, que não havia se alimentado, não quisera a sopa quente e sentiu fome, no momento no qual não havia mais ninguém para oferecer comida, não estava nem mais uma lanchonete ou um bar sequer funcionando para pedir alguma coisa. Percebeu em si uma fraqueza tão grande como jamais sentiu antes. Já iria levantar-se, procurar alguns dos que estavam na rua como ele para pedir alguma coisa se tivessem sobrando, um pão seco que fosse, até mesmo uma cachaça ou alguma droga. Precisava ingerir alguma coisa. Até tentou se levantar. Caiu no chão e sua mente começou a vagar por vários lugares, via luzes, muita comida, bebida, pessoas falando e dançando, um lugar aquecido, uma fogueira envolta, sentiu até a quenturinha das brasas e do fogo.
De repente, tentou se lembrar de seu próprio nome e a memória não veio, não sabia mais em qual cidade estava, não sentia mais os pés nem as mãos. Queria saber se era jovem ou adulto, se teve filhos, como era o nome de seus irmãos, qual a cidade onde nasceu. Sua mente apagou tudo sobre sua vida. Delirou que estava chamando alguém, pedindo socorro, implorando para mudarem sua sorte, lhe tirarem do desamparo. Porém, não sabia dizer quem era ele. Será que era um homem rico? Poderia bem o ser e ter caído ali naquela situação por um mal-estar súbito. Só lembrava que habitava uma cidade onde habitavam muitos ricos e, portanto, poderia ser um deles. Não lhe vinha na mente o nome da cidade.
Não sentiu mais o peito arfando como antes e o movimento do peito foi diminuindo. Não era mais ele, não estava mais sentido seu corpo, não estava mais como alguém que pensa, seus sentimentos estavam indo para longe, não sabe mais o que lhe aconteceu.
De manhã apareceu o carro de polícia, o policial fez o boletim de ocorrência do falecimento de um morador de rua por hipotermia, chamou o carro que transporta corpos para o Instituto Médico Legal. Se havia alguém de sua família e algum amigo, em algum lugar desse mundo de meu Deus, não iria saber do seu passamento. Não estava com os documentos, havia pedido para guardarem numa casa de convivência em Itaquera e lá estão os registros de quem era, já que os esqueceu antes de partir. Mas ninguém soube onde estavam e nem os da casa de convivência iriam saber onde estava aquele que deixou lá os papeis de si próprio.
Rodison Roberto Santos,
São Paulo, 30 de maio de 2024