"MEMÓRIAS AFETIVAS" Crônica de: Flávio Cavalcante
MEMÓRIAS AFETIVAS
Crônica de:
Flávio Cavalcante
A memória é um território caprichoso. Há lembranças que se instalam em nós como hóspedes queridos, que fazem questão de trazer à tona momentos envoltos em uma aura de carinho e saudade, enquanto outras, mais fugazes, se perdem no labirinto do tempo, quase sem deixar rastro.
Lembro-me do cheiro de café recém passado que impregnava a cozinha da casa da minha avó. Era uma fragrância acolhedora, que anunciava as manhãs de domingo. A mesa posta com bolo de fubá, a toalha de linho bordada, as xícaras brancas com detalhes em azul. Cada detalhe dessa cena está gravado na minha memória com precisão quase fotográfica. Minha avó, com seus cabelos grisalhos bem penteados, o sorriso sereno, me oferecendo uma fatia de bolo e perguntando sobre a escola. Esse é um fragmento de tempo que guardei com esmero, uma memória afetiva que aquece o coração cada vez que me lembro.
Em contraste, há tantas memórias que se esvaem, se dissipam como fumaça. Tantas tardes de outono que se passaram sem que eu conseguisse fixar um único detalhe. Quantas vezes caminhei pelas ruas do meu bairro, absorto em pensamentos triviais, sem notar a cor do céu, o rosto das pessoas que cruzavam meu caminho, os sons ao redor. Essas são memórias descartáveis, episódios que não encontraram um espaço no cofre da minha mente, deixados para trás sem cerimônia.
A memória é seletiva, e talvez seja isso que lhe confere um toque de magia. Guardamos com nitidez os momentos que, de algum modo, nos tocaram profundamente. A primeira vez que andei de bicicleta sem rodinhas, o vento no rosto e a sensação de liberdade; o dia em que conheci meu melhor amigo, a cumplicidade instantânea; o cheiro da chuva no asfalto quente nas tardes de verão, evocando uma nostalgia inexplicável.
Ao mesmo tempo, muitas coisas escorrem pelas frestas do esquecimento. Não sei dizer com exatidão o que almocei na última terça-feira, ou o que vesti no Natal de cinco anos atrás. Essas memórias transitórias não encontraram um ponto de ancoragem emocional, e por isso se perderam, levadas pelas correntes do tempo e do esquecimento.
No fundo, são as memórias afetivas que fazem uma colheita de nossa identidade. São elas que dão cor e textura à nossa existência, que nos conectam com quem fomos e quem somos. E assim seguimos, colecionando pedaços de vida, alguns guardados com carinho, outros deixados para trás, compondo, dia após dia, a história singular de cada um de nós.
Flávio Cavalcante