Quase silêncio: uma crônica sobre o amor.

Se há algo que distingue os seres humanos é a expressão amorosa. Aversa à lógica, a paixão tem meandros sinuosos e a sua representação verbal vai do silêncio à torrente de palavras.

O título que dei a esta crônica, “quase silêncio”, expressa uma concepção amorosa vivenciada como sentimento que a linguagem dificilmente poderia traduzir; concepção esta que se localiza no espaço, ou entre-lugar, como diria Silviano Santiago, entre a palavra e o silêncio.

Poucos escritores são felizes ao representar o amor. O lugar comum tende para a pieguice ou a sensualidade excessiva. Mas há os que o fazem com a perfeição de quem constrói uma sinfonia, abarcando todas as suas nuances, as idas e vindas das relações amorosas humanas, os anseios e frustrações que só o coração conhece.

Ao ler O amor secreto, de Paola Calvetti, deparei-me com a extrema habilidade da autora para representar as variações da expressão amorosa, as sutilezas dos grandes silêncios e o arrebatamento da avalanche de palavras.

O romance reúne duas personagens, Constanza e Andrea, cujas personalidades são absolutamente opostas, que, ainda assim, cultivam um amor adúltero, entremeado por crises e breves pausas até a separação final, que não é suficiente para tirar do sentimento a sua força.

Uma separação final para a qual não há despedida; cabendo ao destino trazer à luz o amor secreto, que fora construído no desencontro entre dois seres cuja expressão amorosa era diversa: ela, no borbulho constante da palavra, ele, no mutismo e passividade do silêncio. Mas, ainda assim, amor.

Um amor que a protagonista, Constanza, define como “de conversação”, pois, no entremeio dos encontros fortuitos, foi, principalmente, um amor “epistolar”. As provas dessa conversação vêm à tona pelas mãos de Lucrécia, que encontra, após a morte do pai, uma caixa contendo as cartas de Constanza, vestígios concretos de um amor que existiu nas sombras.

A filha, a quem pouco antes de morrer o pai confidenciara a existência de Constanza em seu passado, traz as cartas com o ar de desafio de quem se sente roubada de uma parte da vida do seu grande ídolo, mas acaba por render-se ante uma história de amor belíssima, ainda que sem happy end.

As cartas são, segundo a sua autora, “a prova do seu exagero emotivo”; destinadas a preencher os vazios e ausências que compunham a trama de seu aprendizado amoroso. Cartas que não eram, na maioria das vezes, respondidas. Expressão torrencial do amor que não encontrava eco no mutismo do ser amado. Busca incessante de expressão de amor recíproca, que viesse a transformar o amor secreto em uma escolha.

A cumplicidade de corpos e de alma não fora suficientemente forte para romper o silêncio, para vencer as barreiras que Andrea construíra em torno de si. Aos poucos, a torrente foi-se esgotando até findar-se em uma última carta, que Constanza não tivera a coragem de enviar: uma carta de adeus.

Constanza e Lucrécia relêem juntas os vestígios do amor secreto; a primeira com a nostalgia de quem traz trancada dentro da alma uma obra inacabada, a segunda com a curiosidade de desvendar o outro lado da vida de seu pai.

O romance atinge o seu clímax no momento em que Constanza descobre um envelope deixado por sua hóspede antes de partir. Uma carta, igualmente nunca enviada, na qual, finalmente, Andrea admitia que amara profundamente a mulher que se entregara a ele de uma forma transbordante, excessiva, absoluta, implorando-lhe que lhe concedesse a oportunidade de vivenciar uma grande história de amor; história que ele negara a ela e a si mesmo, descobrindo, apenas tardiamente, que nenhum amor pode ser vivido com reservas, com moderação.

Cito uma passagem dessa carta que, enquanto leitora, chamou-me a atenção: “Não sei quem disse que “as mulheres não se limitam a viver as paixões: comentam-nas. E assim as vivem duas vezes”.

Ler esse romance me fez pensar no ponto de encontro entre seres tão diferentes, na densidade de um amor construído entre opostos. Concluo que a linguagem amorosa tem uma ordem simbólica diferente do sistema lingüístico, pertence à esfera do quase silêncio, o entre-lugar em que a comunicação evolui para uma simbiose que permite o conhecimento de si e do outro, um adivinhar-se em gestos e palavras do cotidiano.

A realização desse entre-lugar não depende da localização espacial: pode estar em um sobrado antigo de uma rua parisiense, ou em uma janela aberta para o céu de Lisboa. Principalmente, está dentro de cada ser humano, na capacidade infinita de sentir, dar e receber amor.

Referência Bilbiográfica

CALVETTI, Paola. O amor secreto. Tradução de Y. A. Figueiredo. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

Shirley Carreira
Enviado por Shirley Carreira em 04/12/2005
Código do texto: T80767
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