Rubem Alves

Não era qualquer macarrão com carne moída; era o da dona Lurdes, simpática e generosa merendeira dos meus primeiros anos escolares.

Não me recordo das lições de português, matemática, muito menos de religião – aliás, nenhuma área do conhecimento, que as zelosas professoras, a custo, me enfiavam goela abaixo, me apetecia. Não havia desejo. A boca não salivava, como quando é despertada, no calor, por um sorvete, uma cerveja gelada, ou um beijo da mulher amada. Não havia desejo, repito, a despeito do esforço das zelosas professoras. A sirene da polícia alertava os bandidos, que corriam, trôpegos, impelidos pelo medo. A sirene da cozinha despertava os alunos, que corriam, ávidos, incumbidos pelo desejo de saciar a fome. Eu, ainda menino, nada sabia sobre a fome, que mata. Só sabia que sentia e, sentindo-a, sabia onde/como saciá-la. Antes da sirene, porém, o cheiro que vinha da cozinha, despertando-me cores e sons, e devaneios bêbedos/belos, na aula de artes. Descartei a tabuada para desejar a cozinha como quem, pássaro, baba, anseia pela liberdade. Como quem, engaiolado, deseja ser pássaro, e deixa o passado cativo para trás. O cheiro cativante vinha da cozinha como um canto de sereia que seduz os marinheiros para a morte. Dona Lurdes, merendeira generosa e simpática, mexendo seu caldeirão – como uma bruxa com suas porções, temperos –, ávida por trazer as crianças à vida. E eu me encantava, comia à farta, repetia o prato,

me lambuzava como um cão chupando manga, ao que ela dizia “benza Deus, esse menino é bom de boca”, tão logo eu pedia mais uma porção, com uma cara de chorão, do seu macarrão com carne moída encantado, que ela me servia com um sorriso de sabiá no canto do rosto.

O molho era uma delícia. Tem um gosto peculiar, diria que de infância. Notas frescas de inocência; tons tenros de aurora e gotas cintilantes de orvalho. Já se passou mais de vinte anos. A escola permanece no mesmo lugar, só que com outra cara. Não fosse o mesmo local, diria que aquela escola, onde dona Lurdes fazia alquimia, nunca existira. Não, não o local, confundo-me: o local não me dá sinais de que a feiticeira existiu, de fato. Não o local, cuja cal, já desbotada, cheia de bolor, não me recorda nada. Nem a rua, que à época era de barro e agora é de asfalto, me remete coisa alguma. As árvores cortadas, os pés de cajá enormes na beira da estrada, e os de algodão, se ainda existissem, talvez me dessem alguma ideia de que dona Lurdes era real. Talvez fosse coisa da minha cabeça. Talvez uma lenda, quiçá uma palavra obsoleta que ninguém mais usa. Uma nota falsa que se passa por verdadeira – não fosse a merendeira dona Lurdes, generosa e benfazeja, ainda cozinhando minha cabeça com seu macarrão com carne moída. O cheiro dá água na boca. Feitiço. Não recordo de lição do português; tampouco do hino nacional, que éramos obrigados a entoar; nem um pouco das aulas sobre Deus... Quimera!

(Será que dona Lurdes ainda sacia barrigas vazias com sua cozinha pedagógica, ou anda enferma em cima de uma cama, erma de sua labuta, alienada de suas porções libertadoras, que dão água na boca? Que despertam desejo. Quisera a educação se chamasse dona Lurdes, e fosse absorvida como a sede sorve uma cerveja gelada, no calor. Como um amante fazendo amor com a pessoa amada, como a fome comendo, sem cerimônia, o macarrão com carne moída, se lambuzando com o caroço da manga.

Com carinho, para a ostra que faz pérola porque não é feliz.

Deuzebraa
Enviado por Deuzebraa em 01/06/2024
Reeditado em 02/10/2024
Código do texto: T8076075
Classificação de conteúdo: seguro