Crônica urbana

Ela

Ele a encontrou no elevador. Observaram reciprocamente de forma rápida e objetiva. Nenhuma palavra foi dita, apenas trocas de olhares amistosos e fortuitos. Desceu apressada no térreo, quase atropelou o porteiro que disse ter aberto a porta. Ele ficou no vácuo por ser lento. Retornou ao prédio às nove horas da noite. Chegou mais perfumada do que nunca. Parecia ter vindo de outro planeta. Ele a esperava. Entreolharam de cima a baixo, l e n t a m e n t e. Não houve sucesso. O problema foi o ponto de vista.

A moradora do quinto andar

Sem fechar a janela, saiu correndo. Sabia que não retornaria tão cedo. Não disse "bom dia" a nenhum dos moradores que encontrou pelo caminho. Desde sempre aquele endereço lhe pertenceu, herança dos seus pais. Parecia que estava ali às mil e uma maravilhas. Todos os dias fazia uma breve caminhada pela praça que fica à frente do prédio. Sempre bem vestida, embora aparentasse excesso de maquiagem. Entretanto, isso nunca foi um problema para ela. Sabia se proteger como ninguém. O alarme de incêndio foi acionado. Quando os bombeiros chegaram ao seu apartamento, viram escrito no espelho: "o chuveiro está ligado".

Prosa de rua

Do outro lado da via, sobre a sacada do edifício depredado e antigo, ela abriu a janela. Observou ao seu redor. Sem motivo aparente mandou beijos para todos os lados. Ao não receber respostas, bateu no peito com força bruta, como se quisesse arrancar o coração as pedaços. Como num gesto de despedida, agitou as mãos em direção aos transeuntes. Que nada entenderam.

Ele

Caminhava ali só e sozinho. Era de manhã, o sol mal havia saído da toca. Meio sem jeito, fugia dos pedestres e das árvores que compunham a praça. Quando olhou para o alto, procurando um raio de luz, percebeu que não estava tão sozinho como imaginara. No quinto andar alguém acenava com carinho. Olhou para os lados não viu viva alma. Pensou... Pode ser para mim. Era o único cidadão a andar por ali naquele exato momento. Foi tão rápido que não percebeu quem era. A curiosidade saía de dentro para fora. Desejou dar mais uma olhadela. Virou para cima, viu que a janela já estava fechada. Como não havia mais nada a fazer, entrou no edifício. Na porta do elevador uma voz poderosa lhe disse: __ Quinto andar, por favor! Assustado, agradeceu a Deus por ser meio surdo.

O avesso do verso

Ele estava ali na entrada do edifício como um coxo: ora pensava que a rua estava mais baixa, ora acreditava que era o prédio que havia entortado. Não sabia direito se ela morava no quarto ou no quinto andar. Atravessou a rua apressadamente, já quase noite, na esperança de que ela aparecesse por um instante na janela. Ficou ali de plantão por um valioso espaço de tempo e nada! Na manhã seguinte, voltou ao seu posto fincou pé com a mesma expectativa do dia anterior. Até que o porteiro, vendo sua ansiedade, perguntou: __ Você está à espera da moça do quinto andar? Respondi animadamente: __ Sim, como você sabe? Ele o olhou de cima a baixo e disse em meias-palavras: __ Quem vê cara não enxerga coração.

Um dia diferente

O sol parecia adivinhar que aquele seria um dia para ficar na história daquele prédio tão desatualizado e sem qualquer atrativo que lhe desse algum destaque. Os pedestres estavam entusiasmados, caminhavam alegremente, mas não se ouvia ninguém conversando com ninguém. Aquilo parecia uma massa de manobra. Do alto do edifício seria possível imaginar uma cobra serpenteando a via raivosamente. Ele estava presente como de hábito. Considerava os dias como pretextos de "oração". Olhava para si e dizia: "sim e não". Isso era feito com uma simples movimentação de cabeça quando uma sirigaita passava. Sim para a direita e não para a esquerda. Até que sem saber de onde surgiu a esfinge aparentemente fora do compasso. Parecia ter colocado um sapato de salto maior do que o necessário. Andava devagar. Ele espichava o olhar macio e longo a cada movimento que ela fazia. Quando menos se esperava, uma folha de papel caiu da bolsa da criatura. Ele correu para pegar o suposto documento que ainda flutuava suavemente pelo ar. Ficou mais eufórico do que pinto no lixo. Sem dó nem piedade, leu: "Meu nome é Valdemar".

A madame e o vagabundo

Todos os dias a ela descia do quinto andar para levar sua cachorra para passear. Era um ritual bonito de ser observado. Sempre bem cuidada, laço de fita na cabeça, coleira impecável. As duas pareciam ter saído de outro mundo, dada a afeição que demostravam uma pela outra. Ele até pensou que poderia fazer um carinho na cachorra, mas devido à insegurança recuou a tempo. Passados alguns dias a madame desfilava pelos arredores do prédio sem muita ênfase. Seu olhar antes vivo e vibrante, agora era uma tristeza de fazer inveja a "santo de pau oco". O aposentado que estava sempre por ali, meio matuto, encantado com a madame teve a ousadia de dizer: Bom dia! E a sua cachorrinha linda, onde está? No que ela disse com a resposta na ponta da língua: enfartou. Como é isso? Disse ele. Foi uma morte terrível, nem gosto de lembrar. Entusiasmado, arriscou: __ E se eu morrer, você vai chorar? No que ela respondeu: __ Claro que não, a Valentina tinha pedigree.

Aí tem

Ela apareceu mais bonita do que nos dias anteriores, não aparentava tristeza. Ele não a via há duas semana. Ele sabia quem era ela, raramente se cumprimentavam. Sempre a via perambulando pelos arredores do edifício. Era esnobe, mas nada que a desabonasse. Pelo menos era o que falavam. Às vezes ele bisbilhotava sua janela. Apesar de não morar por ali, sabia quais eram as horas que a luz do quarto deveria estava acesa ou apagada. A curiosidade era vasta. Estava sempre tentando encontrar com ela. Os horários não combinavam. Precisava das orientações do porteiro que tinha as informações das câmeras de monitoramento. Contudo, ela estava sempre por ali, dando umas voltas pelo quarteirão. O engraçado é que ele, o aposentado, achava que os glúteos dela estavam mais evidentes. Parecia que havia colocado silicone. Precisava averiguar. Chegou até ela sem-vergonha: __ Você está diferente, mais bonita. Ela respondeu: __ Agradeço muito sua observação, coloquei silicone nas áreas mais susceptíveis a picadas. Precisava me proteger dos mosquitos transmissores da dengue, os famosos Aedes aegypti. Dizem que eles só picam na bunda. Se for do seu agrado, passo o telefone do meu médico.

Avarenta

Engraçado! Ela mora no quinto andar do edifício de uma rua movimentada e desvalorizada. A construção está preocupante e ultrapassada. Mora ali há anos, conhece todos os moradores, conversa com desenvoltura e delicadeza com alguns vizinhos, mas com os funcionários é bem diferente, reclama de tudo, desde a iluminação até as despesas com as câmaras de vigilância. Considera que os gastos com o consumo de água é um desperdício que deveria ser deduzido da retirada do síndico. Um senhor que esta ali porque na última eleição não houve outro candidato com mais capacidade administrativa do que ele. Há algum tempo ela não é vista por ali, onde costuma se sentar na poltrona da recepção para seus devaneios. Quando disseram que ela havia morrido, foi um baita susto. Os moradores precisaram de alguns minutos para se recuperarem do baque. Achavam que ela ainda era jovem e cheia de vida. Na verdade ela não morreu, apenas mudou de ares.

Ah!

Amanheceu turvo, frio, sem nada que pudesse despertar o ânimo de quem estava por ali. Era uma tarde escura de uma terça-feira de inverno. Uma grande quantidade de indivíduos andava pela via sem se preocupares. Não era possível visualizar os detalhes da entrada do edifício. Parecia que ele estava num profundo descompasso. No entanto, o idoso estava presente, como costuma fazer todos os dias. Caso chovesse ou estivesse sol o banco desgastado e encardido recebia suas impressões digitais. De acordo com relatos, a via não seria a mesma sem sua presença. O que se sabe é que ele não tem filhos nem esposa. Entretanto, naquele dia específico, ele começou a observar o edifício como se estivesse procurando alguém. Observava os andares com frequência, como se estivesse esperando por uma aparição Divina em uma das janelas. Outro idoso, um pouco mais velho, chegou e começou a olhar, também para cima sem ter certeza para onde estava olhando. Um apontava para o quinto andar o outro, para o topo. Permaneceram assim até que outras pessoas se juntaram a eles. Ao anoitecer, uma multidão olhava para o edifício sem saber o que estavam procurando.

Saudade

Ele chegou sonolento, quase grogue, sem ter tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior. No entanto, não desejava falar sobre ela. Ela que cresceu e vive naquele prédio até os dias de hoje com seus trinta e poucos anos. Não se sabia exatamente qual era a sua idade, mas isso não a faia uma senhora, pelo contrário, era bem jovial. É verdade que parecia que ela trocava de apartamento, mas sempre no mesmo andar. Isso a tornou uma figura conhecida e reconhecida na comunidade. Ela era e ainda é o um ponto de referência no prédio, principalmente para os sonhos de um idoso. Sem ela não teria nada a ser publicado, uma vez que, ainda é a notícia mais badalada do mausoléu. Sempre alegre e elegante, cumprimenta os moradores que moram perto dela pegando na mão. Dizem que ela conversa com os vasos de plantas. Dizem também, que, quando ela morrer, serão encontrados nos seus escritos os verbos TER e PODER em decomposição.

Aconteceu

A rua em frente ao edifício fica quase vazia nos feriados. Não há muitos moradores nem veículos de tração transitando por ali nesses dias. Mas é sempre importante ter cautela ao andar por qualquer via. Alguns indivíduos insanos não param na faixa destinada aos pedestres, que nem sempre dão sinal. Ela mora por ali, como já disse, em uma construção inadequada para os padrões atuais. Quando ela precisou usar a faixa de pedestres pela última vez, sinalizou corretamente, pois precisava alcançar o outro lado da via com rapidez. Ao se posicionar, o motorista que estava atrás dela emitiu um sinal de luz como se dissesse: __ Pode passar. Ela toda alegre, pensou que fosse um ‘flash’ não deu outra: fez pose de gatinha.

Trapalhada

O prédio onde ela mora estava bem tranquilo. Não havia nada de novo e nem mesmo barulho. Até os idosos estavam, mudos como pedra. Todos os estudantes estavam nas escolas. O local estava um verdadeiro paraíso, um silêncio magnífico. Era possível ouvir até mesmo o canto dos sabiás, muito comuns em grandes centros urbanos. O idoso que costuma se sentar no banco do jardim, tirou uma soneca após o almoço. O corpo foi estendido pelo banco todo como se fosse uma maria-mole. Ao iniciar o lusco-fusco ela, a moça do quinto andar, apareceu no parapeito do edifício utilizando trajes provocativos. __ Que imagem maravilhosa! O idoso pronunciou em alto e bom-tom ao acordar. Sem explicações aparentes, ela começou a dançar um strip-tease. O idoso não se conteve: __ Meu, Deus, como é estranho: nada de peito, nada de barriga, nada de bunda! É tudo silicone. Chorou de tristeza. Justamente ele que a vê como a Vênus de Milo.

Final de festa

Na quarta-feira de cinzas ela chegou esvoaçante e linda, cantarolando: "Não estou nem aí". O elevador estava no quinto andar. Apertou o botão com cuidado e seguiu os andares com olhos de águia até chegar no térreo, onde estava calma e feliz. Subiu sozinha, sem se preocupar com as pessoas que estavam por perto. O guardião idoso estava na berlinda. Seguiu seu trajeto, mas não disse uma palavra. Estava sentado no banco onde marca ponto todos os dias, esperando que ela aparecesse na janela. Olhava para o alto com uma luz nos olhos. Até que percebeu um movimento na cortina quando não acreditava mais em um milagre. Viu que ela olhava pela fresta. Ele ficou encantado. Virou de costas para o prédio, limpou o chão com as mãos no que foi possível e com um cavaco que encontrou por ali, escreveu: "OMA ET".

Na praça

Quase dói na pele ver aquele homem com a cabeça grisalha e quase sem força sentado naquele banco todos os dias. É uma cena que comove. Não se sabe exatamente de onde ele veio ou quem são os seus parentes, se é que ainda os têm. Os moradores dos prédios que estão nas proximidades dizem que ele fica ali naquela posição há vários anos, mas não sabem com clareza quando foi que ele apareceu por lá. Os mais velhos dizem que ele é meio atrapalhado da cabeça e outros dizem que não. O que incomoda é ver o desgaste na pedra como se fosse a moldura do seu corpo. Ele fica lá todos os dias, mesmo que chova ou faça sol. Não é visto conversando com as pessoas e nem perguntam por que não se dirigem a ele. Olham nos seus olhos. Só se preocupam em saber que ele existe.

Coisas amiúde

Toda cidade têm problemas e surpresas. Quando ele sai de sua casa tem que ir para o lado direito - sentido obrigatório. Por isso passa constantemente pela praça que fica perto de onde mora. Os pedestres circulam por lá como se caminhassem em círculos. Suas trajetórias são marcadas a ferro e fogo em cada pedaço do chão. É como se a vida deles estivesse enraizada e não houvesse motivos para mudanças. O idoso recluso vive por lá. Falar com ele é ser sempre a mesma coisa. Parece que está apaixonado por uma moça que mora no edifício que fica defronte à praça. Está sempre contando as mesmas histórias. fala sempre da moradora do quinto andar. É como se a conhecesse de dor e salteado. É de se acreditar que ele nunca falou com ela. A impressão que passa é que existe um amor platônico... Se ela souber, termina com ele.

Solidão

A praça fica a meia distância do burburinho da cidade. Talvez uma hora e meia de caminhada lenta, mas constante. É estranho ver as pessoas que convivem naquele espaço. Uma praça calma, mas com muitos desocupados. As conversas são animadas e barulhentas. Os idosos jogam cartas e dominó. O vendedor de picolé é conhecido por vender o seu sorvete de pauzinho a preços módicos. É como se estivessem sem nenhuma organização e não conseguissem sair do lugar. Um labirinto é escuro e denso. Escutam vozes e se veem conversando sozinhos, nada disto os incomoda. O aposentado sempre fala que vai tirar a roupa e ficar nu na esperança de que olhassem para ele. Mas ele muda de ideia no minuto seguinte, acha que é constrangedor para uma pessoa da sua idade. A solidão em lugares públicos é uma tragédia. Ninguém se vê. Engraçado... O banco está limpo e aconchegante e todas as janelas do edifício estão abertas.

É tudo verdade

Corre um boato a boca miúda de que o edifício da praça onde reúnem idosos e alguns pedintes, vai ser reformado. É verdade que algumas avarias já estão visíveis há tempos. Dizem que existe até a possibilidade de implosão da construção. A placa de inauguração diz que ele foi construído nos anos 50. Mas parece mais velho. Uma das argumentações mais evidentes para a reforma é que, nele, existe um pequeno grupo de prostitutas. Mas nada disto é confirmado pelo síndico que administra o prédio há uma década. Ele não atesta isto! Fofocas e burburinhos correm livremente nas entranhas da praça que o acolhe há tanto tempo. Existem apostas que defendem a derrubada do prédio. No banco do idoso amanheceu escrito em legras garrafais: "... E viva as putas".

Obra de arte

O fato de colocarem tapumes em volta do prédio para dar início do prédio, causou uma confusão de mais de metro. Chamaram a polícia para acalmar os ânimos dos moradores e dos aposentados que frequentam a praça que fica na frente do edifício. Os tapumes, quem diria? Foram furtados na madrugada. Não ficou nenhum vestígio dos aglomerados para contar a história. Ninguém sabe, ninguém viu nada. Todos ficaram surdos e mudos. Porém, no dia seguinte, outras proteções foram colocadas com mais vigor. Essas não foram retiradas. A polícia e os agentes de segurança da empresa contratada para os serviços, controlaram os indefesos rebeldes. Sem poder fazer nada, as "moças" mais atiradas do prédio colocaram suas ceroulas para secar nas janelas em forma de protesto. Foi um festival de cores e tamanhos. No final da semana o prédio já era conhecido no bairro como o Varal de Volpi... As calcinhas tremulando nas janelas eram as verdadeiras bandeirinhas. Um luxo!

Finalmente,

O prédio foi reformado a despeito das putas e do idoso que ali vivia como se fosse a sua casa. Ele só não foi ao chão porque já era uma construção tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional da cidade. Houveram manifestações políticas de arquitetos, urbanistas e até mesmo de moradores dos arredores. Na fachada do novo prédio está escrito: Edifício Alfredo Volpi.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 27/05/2024
Reeditado em 28/05/2024
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