UM PÉ DE LARANJA NO CORAÇÃO

A inocência infantil de sessenta anos atrás era fascinante, mas muitas vezes motivada e até incentivada pela ignorância de adultos despreparados para orientar e educar as crianças. Mesmo porque eles também não possuíam conhecimento suficiente nem satisfatório com vistas a dirimir temores infundados. Além do mais, esse encadeamento de fatores vinha de superstições antigas arraigados na cultura local.

Era bastante comum nos avisarem para nunca engolir a semente das frutas, pois a possibilidade de germinar no nosso organismo e brotar a árvore frutífera existia, melhor seguir os conselhos dos avós que falavam sobre isso. A advertência, claro, assustava a meninada que sofria emocionalmente por dias quando, por descuido, engolia o caroço de alguma fruta.

A esperança maior surgia e se mantinha na possibilidade de o incauto engolidor da fatídica semente expelir a intrusa "perigosa" no momento da evacuação. Daí gerava uma confusão ingênua no coitadinho, vinha o medo de a planta nascer e sair pela boca, ele vivia às apalpadelas no abdômen verificando se havia iniciado alguma anormalidade vegetal inapropriada, chorava, a mãe preparava chá laxante, enfim, a casa virava um grande alvoroço.

Aconteceu comigo, por vezes as pequenas sementes de laranja, melancia ou goiaba acabavam indo para meu estômago junto com a polpa, para meu imediato desespero. O pensamento voava em pânico e a imagem do pezinho de laranja começar a nascer apavorava minha alma. Mas tudo não passava de absurdo folclore, de invencionices sem fundamento que foram passadas até a minha geração.

A inocência desses instantes desapareceu com o tempo, a televisão, a internet e as redes sociais. O universo das informações em cascata, se bem transborde a mente humana nos dias de hoje, tem o lado positivo de derrubar cientificamente velhos tabus pondo fim à ingenuidade. Infelizmente também retirou o belo véu que escondia das crianças os inúmeros saberes indevidos capazes de preservar a sua pureza.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 27/05/2024
Código do texto: T8072466
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