Três quilômetros do leite em pó

O homem é o único bicho que sente medo de si. As zebras, na natureza, fogem dos leões. Os ratos morrem de pavor da cobra faminta. Porém o bicho gente pode correr três quilômetros para fugir de si mesmo. O ser humano treme diante de uma opinião, seu mundo desaba perante quatro palavras, sejam sejam nossas, mentais, ou alheias. O pensamento é o nosso perpétuo predador, e devora cada um de nós.

Veja bem, pensamentos muitas vezes são palavras; sons que a humanidade resolveu atribuir significado. A rigor, não querem dizer nada, mas sentimos temor. Não gostamos de pensar em certos assuntos. Seja a morte de um ente querido, um acidente desagradável ou qualquer ofensa visual, tentamos não pensar nisso. Pelo menos os animais sentem medo de coisas tangíveis…

Num dia e ano que não lembro, eu era um estudante do curso de Psicologia. Eu estava conversando com alunos de Direito. Em nossa faculdade havia uma clínica-escola, e eu estava incentivando os colegas a fazerem terapia. Porém, em cada um, eu sondava uma face de recusa. Eu brinquei dizendo “gente, vocês estão cometendo crimes e não querem admitir?”. Falei isso porque intuitivamente percebia um quê de medo neles, uma angústia em se abrir.

Não quero ser insensível. Você e eu sabemos que cada um tem seus demônios e nem todos gostam de falar de suas mazelas. Há um poema de Álvaro de Campos [1] em que ele se queixa que ao seu redor todos parecem perfeitos, mas apenas ele é um porco. Poucos admitem seus erros, e isso pode gerar nos gerar vergonha. O prazer maior é o de contar uma vantagem. Confessamos a derrota para poucos - isso caso comuniquemos a alguém!

Isso acontece porque, como eu disse, tememos a opinião do próximo, por mais que seja boba. Acho que existem motivos evolutivos para sermos assim. Suponho que em uma tribo, pessoas com condutas reprováveis eram afastadas do convívio social. Não podiam casar nem comer ou morar bem, e não passavam sua prole adiante. Os comportamentos que sobraram formaram o status quo.

Ontem (24/04/2024) de manhã senti vontade de tomar leite. Abri a geladeira e destampei a embalagem: O cheiro não estava bom e joguei fora, mas minha sede branca persistia. No armário da cozinha havia várias caixas de leite. Eu poderia lavar uma delas, matar minha vontade e deixar o leite geladinho e acessível aos meus familiares, só que tive preguiça. Peguei leite em pó, misturei com água e bebi. Acho que sequer lavei minha xícara. Deixei na pia. Pecado capital da canalhice.

Tentei imaginar o ridículo de contar essa história pra alguém, uma narrativa de pura vagabundagem (só não fui mais indolente por que preparei um leite, eu poderia simplesmente ter desistido de beber). Não contei pra ninguém. Ninguém viu, nem me apontaram o dedo em deboche para me afastar do clã, me abandonando pra morrer de fome, isolado na selva. Mas mesmo assim, senti o peso da moral em minhas costas metafóricas. Tal qual Adão sentiu vergonha de Deus no Paraíso, senti vergonha de um ouvinte intátil ouvindo minha crônica de preguiça. Fugi de palavras.

[1] Poema em linha recta - Álvaro de Campos: http://arquivopessoa.net/textos/2224

Guilherme Sousa da Silva
Enviado por Guilherme Sousa da Silva em 25/05/2024
Código do texto: T8071157
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