A digestão da preguiça
A sala estava uma preguiça. Os corpos desleixados se espremiam no sofá puído. Suspiros lentos e alternados soavam de vez em quando. A causa do marasmo foi a deliciosa dobradinha que minha irmã cozinhou. Depois do banquete generoso, a digestão é a única coisa que importa. Que lancem as bombas!
Estávamos assistindo ao jogo do campeonato Inglês, Manchester United contra Liverpool, mas a letargia não me deixava prestar atenção. Quem fez o gol? Qual é o nome do número 5? O mais ligado era o sobrinho que acompanhava o torneio.
As mulheres não estavam contentes. Pegaram o controle remoto, o dedo nervoso da sobrinha foi vasculhando os canais. Ela escolheu Roda a Roda Jequiti, com Rebeca Abravanel.
Eu nunca vi apresentadora tão murcha. O programa é ultraje ao brasileiro. Mas o povo gosta de coisas ultrajantes. O auditório aplaudiu o espectro que falava ao microfone: — O tema de hoje é pássaros. Vamos ver quem vai ganhar? Genilde, pode rodar…
A turma do sofá emitiu palpites: — papagaio, canário, alma-de-gato… — Eu não sabia que gato tem alma. O bichano vai para o além? Agora faz sentido a história do gato preto debaixo da escada. Asperge água benta!
A digestão se tornou indigestão. Eu pedi para voltarem ao jogo, mas recebi um não coletivo. A escolha estava feita, o Roda a Roda da chatice era a escolha. Eu queria desligar o disjuntor, desse modo a casa ficaria sem energia, igual à apresentadora. No entanto seria desrespeito com os familiares. Resolvi aturar porque eu não tinha força para levantar do sofá. A dobradinha me dobrou!
— Eu falei que era canário! — Comemorou a sobrinha.
E a alma? E o gato?
O período de tortura valeu a pena.
— A torta de limão está no ponto! — minha irmã gritou da cozinha.