Mostra a Bunda!
- Mostra a bunda.
Não, não é o que parece. Sua leitura não será recheada de frases promíscuas ou trechos pornográficos. Nem mesmo confissões de experiências carnais inesquecíveis serão despejadas. Fantasias adormecidas no inconsciente imaturo e afogadas em enchentes hormonais? Errou de novo. Este texto ultrapassa o pensamento premeditado de qualquer alçapão orgásmico e relaxa em outra aberração comportamental de nossa sociedade: o exame médico admissional.
Sempre desprezei qualquer visita médica que não fosse acompanhada de sintomas. E estes, quando existentes, deveriam ser justificados por dores agudas e secreções de cor enjoativa. “Não, senhor, isto nem chega perto da cor mostarda e da consistência mal-escorrida do pus, saia já do meu consultório!” Até mesmo os exames de rotina, mera confirmação da desarmonia alimentícia e física que levamos, somente alertam para o desempenho covarde do nosso organismo. Culpa dos triglicérides indecisos.
Mas no caso dos exames admissionais, a aversão surge mais ardida. A começar pelos distintos consultórios que oferecem o serviço às empresas. Escondidos em edifícios de acesso promíscuo – ninguém sabe quem entra ou sai – suas salas são controladas por uma secretária de humor canino e um médico de referências descartáveis. “Peraí! Mas eles estudam longos seis anos para adquirir conteúdo científico relevante que permita a detecção de diagnósticos precisos”. Certo, confie mais do que um “diga 33” a eles e veja o resultado.
Percebe-se no olhar semi-aberto destes médicos a incoerência entre o que pretendiam ser e o que se tornaram. O diploma pendurado na parede e as lembranças do juramento confundem-se a cada consulta de dez minutos. Rabiscam “ok’s” automáticos em papéis timbrados, enquanto flutuam os interesses privados como se intoxicados em rios de éter. Mesmo que lutem contra a padronização do teatro que contracenam, acabam vítimas da própria repetição descerebrada. “Tome esta pílula a cada oito horas...”
Sempre vivi experiências que confirmavam a falácia profissional destes médicos e seus carimbos frenéticos. No entanto, a última delas mereceu atenção especial. O bombardeio de perguntas evidenciava a prática de memorização do médico.
- Algum caso de derrame na família, insuficiência hepática, diabetes, infarto, lepra, catapora, rubéola, hemofilia?”
Antes que pronunciasse os “nãos” que se atropelavam em minha cabeça, recebia novo repertório:
- Furunculite, desmaios, vômito, convulsão, alergia, sangramento, micose, catarro?
Precisava me segurar para não dizer que a única dor que sentia naquele momento era nas bolas, justamente por agüentá-lo. “Estão vermelhas e inchadas, doutor, será que é grave?”, imaginei sem abrir a boca. Nem mesmo segurei o riso interno e fui surpreendido por sua voz falhada – talvez devido ao pulmão preto, levando em consideração a cor cinzenta de seus lábios e dedos.
- Tire a roupa.
- Desculpe, o que...
- Estudei seis anos, rapaz. Tire a roupa.
Antes que começasse a tirar o tênis, para facilitar o desnude, recebi nova repreensão:
- Não precisa tirar o tênis, rapaz!
- Mas como...
- É só arriar! Só arriar!
- ...ok.
- Agora sopra a mão direita com força.
- Quê?
Fingi que não estava entendendo o procedimento, já que ouvira estórias igualmente bizarras em processos de alistamento militar. O que me fazia contestar, no entanto, era o falso rigor para a futura função de redator. Sim, concordo que é preciso ter culhão pra escrever sobre determinados assuntos – este texto é um grande exemplo, aliás – mas suas anatomias não precisam ser literalmente aprovadas. Precisam?
- Assim, não, rapaz! Sopra com força!
Soprei. Por um momento imaginei meus olhos pulando das órbitas diretamente sobre o cinzeiro em formato de caranguejo que enfeitava a mesa. Talvez fosse presente de algum paciente – duvido! – ou da própria secretária com cara de safada – aposto!
- Mostra a bunda.
Segurei a risada que tentava escapar entre os dentes. Quais sinais assombrosos poderiam marcar minhas nádegas e, conseqüentemente, impossibilitar meu trabalho como redator? O tamanho do “ponto final”, talvez? De qualquer forma, girei o corpo com desconfiança. Estava a uma distância razoavelmente segura do médico, mas não queria arriscar.
- Ok. Pode se vestir.
- Graças a ...
- Mais uma coisa.
- O quê?
- Você já fez alguma cirurgia?
Já cansado da metodologia infantil daquele exame, arrisquei mentir:
- Fiz, sim, doutor. Rasguei toda a extensão do tornozelo ao descer um penhasco com um carrinho de rolimã. Após três cirurgias, me liberaram o andador. Dois anos depois ia a qualquer lugar com minhas muletas. Tenho 12 pinos sustentando os ossos.
- Mas você consegue andar normalmente, né?
- Claro que sim, como um competidor de marcha atlética.
- Aqueles que rebolam?
- Esses mesmos.
- Hum... ok, rapaz. Você está aprovado no exame de admissão.
Após rabiscar uma assinatura qualquer, enfeitada por círculos e pontos forçados, recebi o papel que confirmava minha capacidade física para o trabalho. Comecei a ler o documento, já em pé, enquanto seguia em direção à saída. Antes que cruzasse a porta, percebi um erro e comentei impulsivo:
- O senhor escreveu “tornoselo”.
- E...?
- “Tornoselo”, com “s”.
- Qual o problema?
- Er... nenhum.
Despedi-me e acionei o botão do elevador sem pressa, imaginando que talvez seis anos não fosse tanto tempo assim.