O povo em cena. Vida do carnaval de rua.
Qual será a música mais tocada no próximo carnaval? Antes (e acima) de quaisquer especulações sobre um próximo sucesso a conquistar ouvidos e salões, é óbvia a constatação de que frevos cantados há décadas por nossos avós e pais serão cantados pelos pernambucanos, outra vez, com o entusiasmo das grandes novidades e a familiaridade das canções que nos recordam histórias.
Longe, bem longe, da mesmice ou do culto piegas a um passado mítico, o centenário frevo testemunha e protagoniza a modernização e atualidade de uma cultura plural (e pluralizante) de uma gente que se orgulha de seu passado pensando o futuro, pisando, no presente, o seu chão para “falar para o Mundo”.
A diferença do carnaval de Pernambuco mora justamente aí, onde, ano após ano, refrões e toques de clarins se repetem. No frevo, que vai às ruas convidando toda a gente a ser uma só, é indiferente saber a letra de cor ou simplesmente imitar com a boca os acordes das orquestras de metais. O frevo agrega quem canta e quem ouve, quem se mistura à multidão e quem apenas vê.
Nas ruas, repletas, cantar, dançar e rir é rito que diz do nosso jeito acolher e assimilar outras culturas: jogando tudo no caldeirão multissonoro e multicolorido que soube unir maracatus e rock, cirandas, côco, hard core, frevo e jazz.
Do Mangue Beat de Chico Science e tantos outros, passando pelos cortejos e improvisos de rua das mais diversas tradições, ao Armorial de Ariano Suassuna, a sonoridade e o movimento que permitem o atrevimento de chamar o Carnaval Pernambucano de multicultural tem a tônica da mistura espontânea e singular.
A mistura acolhe, democratiza, e confirma frevos e maracatus como mestres de cerimônia de uma festa que ao acabar, sob lamentos e cinzas, imprime nas memórias de visitantes e cidadãos as letras de canções que fizeram foliões de décadas passadas frever as ruas como nós repetimos hoje.
Ciência, de uma antropologia intuitiva, ou consciência, gestada no respirar das ruas, o carnaval de Pernambuco se aprende por imersão. E os pais o ensinam, de um jeito ou de outro, a seus filhos.
E de repente, nos é familiar um folião com os cabelos desgrenhados, de braços abertos para o alto, que já não se une ao nosso coro; e, outro, de frevar valente e andar descrente que, na certa, anda fazendo carnavais no céu. Cantados nos frevos de Bloco e de Rua, foliões de carnavais passados passam a fazer parte dos carnavais por nós vividos. Mário Melo, o Bom Sebastião, Felinto e Pedro Salgado, Valfrido Cebola, Haroldo Fatia e Enéas Freire somos todos nós, nossos amigos e parentes, sonhando nas ruas aquilo que a vida poderia ser, cada dia: arte de encontros permeados de riso e cor.
Metade do argumento de explicação sobre a experiência do carnaval de Pernambuco é dado pela palavra “paixão”, a outra metade, é encantamento transmitido por contagio. Carnaval para os olhos e ouvidos. Tradição e invenção. Na liberdade de uma festa que estrapola – graças a Deus! – as programações oficiais. Reina, mais que Momo, a inventividade do povo, a resistência do povo. Resistência que dá visibilidade a caboclinhos, maracatus e afoxés, celebrações de povos oprimidos - índios, negros, mestiços pobres - que, teimosamente, fizeram de sua cultura uma ação permanente de liberdade e libertação.
A multiplicidade das expressões do povo em blocos, agremiações, troças, nações, é marca de uma sociedade com inúmeras influências culturais. O jeito como isso tudo se funde durante o reinado de Momo, é testemunho de como respeito e diversidade podem caminhar juntos, assim como diferença e democracia.
Ali, em ruas e praças, o povo diz, com sua festa, um outro jeito de como poderia ser o Mundo. Inverte e brinca para celebrar a esperança. Ri como testemunho antecipado do que a vida pode ter (e ser!) de melhor...
Para além do mercado e da moda; e para além, muito além do mau gosto e dos excessos, há um carnaval pulsante no coração do povo que nos diz da festa e da união. Carnaval que celebra a possibilidade de serem as ruas e as praças o lugar para o encontro, para a alegria. Cidadãos convertem-se em foliões, livres já das paredes dos edifícios urbanos, dos medos (também urbanos) que isolam as pessoas.
Neste carnaval, sei que irá tocar algumas dezenas de vezes o frevo que fala “viemos defender a nossa tradição”, mais: irá nos tocar a certeza de que nossos filhos aprenderão contentes amar o frevo mesmo sem saber fazer um passo sequer da dança, irá nos tocar a beleza do povo nas ruas, colorindo Recife e Olinda, Bezerros e Nazaré da Mata.
Pelo carnaval de rua, aprendo a sonhar que, um dia, o povo vai saber e assumir que pode fazer de seu jeito a alegria, a festa... a partilha, o Mundo.
(Texto publicado originalmente na Revista Família Cristã)