O despertar do David: reflexões sobre a evolução linear humana
Revendo fotos antigas deparei-me com as que marcam minha visita à Galeria dell’Accademia, em Florença. É a escultura de David, obra de Michelangelo. Ele iniciou o trabalho em 1501 e terminou em 1504. Quatro anos para terminar uma obra prima que outros haviam tentado fazer sem sucesso. A escultura permaneceu guardada e inacabada por mais de 40 anos, até que Michelangelo assumiu e terminou o projeto.
David de Michelangelo pesa cinco toneladas e mede cinco metros. Esse trabalho faz parte de um projeto de doze esculturas bíblicas utilizadas para decorar a parte externa da Catedral de Santa Maria del Fiore, atualmente conhecida como Duomo de Florença.
É uma obra que impacta não só pelas dimensões, mas também pela riqueza de detalhes da anatomia humana. A sua expressão facial e corporal demonstram concentração e tensão. David está pronto para o ataque, músculos contraídos, narinas dilatadas, veias estufadas na pele dos braços e pescoço, testa franzida, expressão de alerta. Mostra uma realidade quase humana.
Esta escultura, lembrou-me um conceito de historiografia de que a noção linear da evolução humana é errônea e ingênua. Não somos o último ponto da linha evolutiva antropológica. Esta ideia ganhou corpo no Renascimento com a necessidade de se valorizar o humano e o colocar como centro do mundo.
Tente imaginar como um ser humano no inicio do Século XVI com o conhecimento e técnica da época pôde fazer e deixar para a humanidade a perfeição. Como determinar com precisão as proporções, a anatomia e fisiologia sem as ferramentas e técnicas analógicas ou digitais de hoje? Como transportar e movimentar um bloco de cinco toneladas? Como calcular os pontos de apoio para que a obra não quebrasse o desabasse quando terminada e colocada de pé? Como expressar tão bem angústia com cinzeis e um bloco de pedra?
A noção de evolução linear é simplista e redutora. A complexidade da experiência humana é marcada por avanços e retrocessos, por conquistas e fracassos, não pode ser resumida a uma linha reta que aponta inexoravelmente para a perfeição. Michelangelo deu vida a uma pedra, transformou-a em uma obra prima que perpassou por séculos lembrando-nos da necessidade de repensarmos com humildade a nossa evolução.
Márcia Cris Almeida
22/05/2024