Nicinha, Feijoada e cia.

Podemos dizer que a menina nasceu numa voltagem acima da média. Enquanto os bebês ficavam no "buááá", a guria já balbuciava em russo, mesmo tendo nascido no Rio de Janeiro, a 2.589 anos-luz de Moscou. O que parecia ser fenômeno virou realidade. Com dois anos de idade, Nicinha já lia em grego de trás para frente, espirrava em turco e bocejava em japonês. Aos cinco anos, e fluente em 48 idiomas, a moleca adorava sacanear o pai fazendo perguntas absurdas. Mas o papo mole a seguir tinha uma razão escondida.

- Pai, como se diz "miau" em indonésio?

- Miau.

- Não! Meong! E em tcheco?

- Miau.

- Mňau!

- Filha, gato faz "miau" e ponto. Pode ser aqui, na Argentina, Bulgária, Albânia, Tanzânia e Groenlândia! Gato não tem sotaque!

- Tô falando de onomatopeia.

- Que tem a ver centopeia com gato? Ah, já sei! Você vai me falar que uma onomatopeia é uma centopeia egípcia que gosta de picar gatos persas...

- Na verdade, eu quero falar sobre outro animal. O senhor me disse que no seu tempo de estudante, a fêmea do cachorro era cadela.

- Pois é! Parece que as gerações pós-anos 80 acabaram com as cadelas! Só se fala em cachorra! Isso é um crime linguístico!

- Na verdade, cadela e cachorra são a mesma coisa. O senhor já ouviu falar em cachorrada, certo? Mas nunca ouviu "cadelada".

- Porque as cadelas foram extintas!

- Não foram.

- Foram, sim!

- Tem uma lá na porta.

Viu? Eis a razão escondida citada no começo do texto.

- Uma o quê?

- Ca... cachorradela.

- Tem uma cadela na porta?

- Posso abrir?

- Pra quê?

- Pra ela entrar!

- Nicinha, temos quatro gatos e um cágado!

- Pai... ela é tão linda.

- A moça do pet shop também deve me achar lindo! Apareço por lá dia sim, dia não!

- Olha aqui, pai - quando a guria abriu a porta, uma linda e crescida cadela preta estava plantada do lado de fora - Viu! Ela não é linda? Podemos?

- Podemos o quê?

- Ficar com ela!

Nunca!!! Isso aqui parece um safári! Daqui a pouco teremos tatu, jacaré, hipopótamo, orangotango... peraí, o que é isso na boca da cadela?

- O senhor viu, né!! É um filhote!

- Esqueça!!! Fecha a porta!

- Mas, pai...

- Nem que a vaca tussa!

- Ela está abandonada. E o filhote é tão pequenininho.

- Eu vi. Parece um feijão.

- Boa ideia! Vamos chamá-lo de Feijão! E ela de Feijoada!

- Você ouviu o que eu falei sobre o safári...

A bronca foi pausada no exato momento em que o cachorrinho preto esboçou um choro. E a mãe, propositadamente ou não, foi no embalo. Pronto. O coração de pedra do patriarca ficou amanteigado. Impossível resistir a tanta meiguice gratuita.

A partir dali a moça do pet shop tinha ainda mais motivos para gostar daquele assíduo cliente.

Certo dia, Feijoada desapareceu, deixando Nicinha desolada. O choro da menina era tão dramático que podia ser ouvido a três quadras de distância. Ainda bem que o suplício durou pouco. Doze horas após o sumiço, Feijoada reapareceu, sonsa e tranquila, como se nada tivesse acontecido.

Mas aconteceu.

Meses depois, nasceram Fava, Macassa, Fradinho, Carioca e Preto. Suspeita-se que o pai deles é o Tropeiro, cachorro de uma pensão que andava meio jururu até o dia em que conheceu Feijoada e assim formaram família.

Família que mora, claro, na casa de Nicinha, para alegria de seu pai, que precisa fazer duas horas extras por dia para garantir o alimento da tropa.

Mal sabe ele que Fava, Macassa, Fradinho, Carioca e Preto estão aprendendo de tudo um pouco com Nicinha. Só faltam falar.

Aliás, desde ontem que Fradinho está latindo diferente.

Parece ter adquirido algum tipo de sotaque. Deve ser pela convivência com François, um dos gatos da casa, que aprendeu a miar em búlgaro: "мяу".

Barão do Subúrbio
Enviado por Barão do Subúrbio em 21/05/2024
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