Entre Sem Bater - Reciprocidade

Um Anonymous disse:

"... a reciprocidade não é sobre convencer alguém a te dar alguma coisa. É justamente sobe não precisar fazer isso ..."(1)

Este é o nome do perfil (Anonymous) que utilizo na trilha "Entre sem bater" para atribuir a autoria de algumas frases-chave de cada texto. O principal motivo é não identificarmos a origem, autoria ou primeira referência de cada pensamento. É, também, uma forma de reconhecer o valor dessas citações, que não fazem parte da lista de hoaxes, fake news e mentiras.

Excepcionalmente, este perfil terá utilização para muitas frases e, a princípio, representará um personagem, conforme cada acepção.

RECIPROCIDADE

Em primeiro lugar, é necessário expor alguns atributos e qualidades da palavra reciprocidade, antes de contextualizá-la no mundo moderno.

Não são poucas as palavras que originaram-se diretamente do Latim e que, permanecem íntegras e sem muitas variações atualmente. Por outro lado, ao ter significação forte em áreas como a filosofia e a política, sua função na gramática pode sofrer alguma diminuição. Por exemplo, se na gramática podemos referir a duas palavras de sentidos opostos (dentro e fora), em política pode significar uma troca de favores.

O mundo moderno adotou a reciprocidade como algo que se você faz algo é porque vai querer algo em troca. Surpreendentemente, nem mesmo a famosa frase da Oração de São Francisco de Assis(*) resistiu às redes sociais e hordas de aproveitadores. Desse modo, podemos transcrever as duas principais acepções e, a partir delas, revelar que a reciprocidade não é mais a mesma.

SIGNIFICADO DE RECIPROCIDADE

substantivo feminino

Estado recíproco, do que se realiza ao mesmo tempo que outra coisa; mutualidade. Correspondência, cooperação.

[Política] Situação em que dois países firmam um acordo de cooperação, fornecendo auxílio ou troca de vantagens entre si.

e.g. o Brasil e o Chile assinaram contratos comerciais de reciprocidade.

[Filosofia] Capacidade intelectual que, segundo Kant, torna compreensível a relação entre dois ou mais componentes,

mutuamente percebidos no espaço, de aspecto e forma integrantes.

Fonte: dicio.com.br

Desse modo, e considerando que os antônimos de reciprocidade podem ser: parcialidade, unilateralidade, egoísmo, temos muitos paradoxos. O mundo digital incentiva exatamente os antônimos de reciprocidade, logo, temos exatamente uma grande hipocrisia nas palavras positivas.

MUNDO MODERNO

O uso intensivo do termo "reciprocidade" nas redes sociais, inquestionavelmente, criou um paradoxo perturbador e inimaginável. As plataformas digitais, em teoria, deveriam fomentar interações genuínas, onde a reciprocidade seria um valor central. No entanto, na prática, observa-se que nas redes sociais prevalecem as atitudes e comportamentos opostos do que a reciprocidade representa.

Em primeiro lugar, a barbárie(2) da parcialidade é onipresente nas redes sociais onde cada um que fazer valer a sua opinião. Os algoritmos que governam essas plataformas priorizam o conteúdo que reforça as crenças pré-existentes dos usuários, criando bolhas de conteúdo. Desta forma, o fenômeno "filter bubble", assegura que as pessoas vejam apenas pontos de vista que corroboram suas próprias opiniões. Por isso, aumenta a visão de um mundo unilateral e exclui-se a diversidade de pensamentos e opiniões divergentes. A reciprocidade, neste contexto, se torna superficial, pois a interação se limita à validação mútua de opiniões homogêneas. Enfim, um verdadeiro intercâmbio de ideias ou a possibilidade de debates mínimos praticamente inexiste.

SÉCULO DO EGO

Talvez a influência do marketing, que indicou que vivemos em pleno "Século do Ego", elevou o egocentrismo a níveis fora do normal. A necessidade constante de autopromoção, de busca por likes, compartilhamentos e seguidores faz de conta que quer reciprocidade. Por isso, muitos utilizam essas plataformas como palcos para suas vidas pessoais copiando a vida dos outros, sem mutualidade.

Frequentemente, projeta-se uma imagem ideal, na maioria dos casos irreal, superficial e falsa. Este comportamento não promove a reciprocidade, pois a interação é sempre pelo desejo de receber atenção. Em outras palavras, as pessoas não querem estabelecer conexões autênticas e mutuamente benéficas, querem só aproveitar dos outros. Assim, a reciprocidade genuína sofre um grande rebaixamento, em prol do narcisismo digital.

CORPORATIVISMO

Como se não bastasse o comportamento paradoxal dos indivíduos, com as suas hipocrisias e desvios de caráter pessoal, grupos sofrem contaminação. A carência pelo pertencimento e aceitação faz com que o indivíduo adquira a antítese da doença da moda(3).

O corporativismo se reproduz, sem dúvida, na maneira como os grupos e comunidades se formam nas redes sociais. As pessoas tendem a se agrupar com aqueles que compartilham interesses ou objetivos comuns. Estes grupos excluem ou repudiam, deliberadamente e covardemente, os que pensam e opinam "fora da caixinha".

Este tipo de comportamento grupal reforça a segregação, já que aqueles que pensam de maneira diferente sofrem ações de constrangimento. As dinâmicas de grupo nas redes sociais, portanto, tendem a promover a lealdade a um coletivo específico em prol de dogmas e crenças. Por outro lado, repudiam e combatem verdadeira reciprocidade, que requer abertura e aceitação de diversidade.

SEGREGAÇÃO E PRECONCEITO

Os paradoxos não param no egocentrismo ou corporativismo, criam uma espécie de escravidão(4) real, mental e política que assusta.

A segregação e o preconceito são, por exemplo, outras facetas negativas que ampliam-se e proliferam-se pelas redes sociais. É enorme a capacidade de se esconder atrás de uma tela, para expressar atitudes discriminatórias e até o assédio. Desse modo, a ausência de interações face a face diminui a empatia e a responsabilidade pessoal. As redes sociais, assim, se tornam terrenos férteis para a disseminação de discurso de ódio e exclusão. O que está, com toda a certeza, em total desacordo com o princípio de reciprocidade, que implica respeito entre os indivíduos.

A hipocrisia, adicionalmente, é um elemento subjacente que permeia todas essas atitudes inconvenientes e desumanas. Muitos usuários das redes sociais se apresentam como defensores da reciprocidade e da justiça social, mas suas ações são contraditórias. A discrepância entre a imagem pública virtual e o comportamento real dos indivíduos nas redes sociais é alarmante. A adesão ostensiva a princípios como reciprocidade serve muitas vezes como uma máscara para atitudes egoístas e discriminatórias. Desse modo, temos uma exacerbação do ambiente de falsidade e superficialidade que caracteriza essas plataformas.

O FUTURO

Em suma, o uso intensivo do termo reciprocidade nas redes sociais esconde um paradoxo profundo. E, surpreendentemente, o futuro não parece promissor, pois até analistas comportamentais já falam que somos seres piores(5). Enquanto o termo reciprocidade sugere um ambiente de troca mútua e igualdade, a realidade das interações digitais é o contrário. Estes comportamentos, não admissíveis pelos próprios perpetradores, revelam um nível alarmante de hipocrisia. A promessa das redes sociais como espaços de conexão e compreensão mútua inexiste, pelas práticas  que minam a reciprocidade genuína. A reflexão crítica sobre essas dinâmicas é essencial para transformar as redes sociais em espaços mais autênticos e inclusivos.

A possibilidade da reciprocidade verdadeira, segundo suas origens latinas, venha a florescer, vai se extinguindo. Frases como esta que ouvimos sem identificação de um autor (anônima) dizem muito sobre os caminhos que vamos percorrer. Certamente, estamos muito longe de atingir a capacidade intelectual a que Kant se referia sobre reciprocidade. Reflita !

 "Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*)  O texto é longo, mas a frase "... Pois é dando, que se recebe ..." ganhou uma interpretação peculiar com as redes sociais.

(1) "Entre Sem Bater - Anonymous - Reciprocidade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/21/entre-sem-bater-anonymous-reciprocidade/

(2) "Entre Sem Bater - Antonio Muñoz Molina - A Barbárie" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/09/25/entre-sem-bater-antonio-munoz-molina-a-barbarie/

(3) "Entre Sem Bater - Dostoiévski - A Doença do Século" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/06/entre-sem-bater-dostoievski-a-doenca-do-seculo/

(4) "Entre Sem Bater - Charles Darwin - Escravidão" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/05/13/entre-sem-bater-charles-darwin-escravidao/

(5) "Entre Sem Bater - Pepe Mujica - Somos Seres Piores" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/20/entre-sem-bater-pepe-seres-piores/