O vendedor de trem
Rio de Janeiro, 2024.
O pai era viúvo e sem irmãos. Seus parentes mais próximos estavam a 2 mil quilômetros de distância, e ele tinha um filho pequeno. Tudo que ele fazia era em prol do filho.
Por mais que Manoel, o miúdo em questão, fosse admirador do ofício do pai, era sabido que ganhar a vida como vendedor ambulante de trem não era o melhor dos sonhos.
Sendo assim, o pai fazia questão de levar o filho para o melhor colégio público da cidade através do trem. Para tal, elaborou um plano perfeito: na estação do Maracanã, ele entregava o filho para uma segurança da plataforma, que fora sua namorada dez anos atrás; ela levava o pequeno até a saída da estação e o entregava para um guarda municipal, amigo dela, que deixava o pequeno na porta do colégio. Quatro horas depois, a logística inversa acontecia. O pai se programava para estar na estação ao meio-dia, pois precisava buscar o guri, que já tinha sido entregue pelo guarda municipal à segurança da plataforma.
No começo, as coisas foram complicadas. E não estou me referindo ao carrossel citado acima. Isso era o de menos. O enxuto leitor já foi criança e sabe que elas, as crianças, só mentem depois de certa idade. Antes dessa fase, elas são experts em sincerologia. E Manoel começou a estudar justamente na áurea fase das verdades ditas sem filtro.
A coisa acontecia assim: o pai chegava no vagão carregando duas caixas médias de isopor. Cada uma delas guardava cinquenta saborosas cocadas feitas por ele mesmo. Mas, como bom camelô, ele precisava vender tudo para garantir o sustento da casa. Dessa forma, a lábia do cara era dotada de exageros e mentiras cabeludas.
- Olha aí, pessoal! Cocada maravilhosa! Cocada caseira! Cocada gostosa! Produto original importado da África!
Sabe quando a mentira acende uma lâmpada na percepção de quem a ouve? Era o que acontecia com Manoel, que fazia questão de corrigir o pai de imediato.
- Pessoal, essa cocada não foi importada da África! O coco foi comprado no Mercadinho do Zé Caipira!
Óbvio que as pessoas caíam na gargalhada. Manoel era espontâneo. Em nenhum momento ele queria escandalizar o pai. Acontece que o pequeno sentia-se na obrigação de colocar verdades na fala do pai.
- Olha aí, pessoal! Cocada docinha, cocada vitaminada, cocada recheada...
- Tem recheio de quê? - perguntou uma aspirante a freguesa.
- Morango, abacaxi e goiaba!
- É recheio da fruta?
- Não, meu pai compra Tang e mistura tudo!
Em outro momento...
- Olha a cocada, pessoal! Cocada deliciosa feita exclusivamente para quem tem bom gosto!
- Moço, essa cocada tem pouco açúcar? - perguntou um coroa bem vestido.
- Sim! Ela é praticamente diet e light!
- Meu pai eeeeeenche a panela de açúcar, tio! É um saco para cada panelada!
Em outro vagão...
- Olha a cocada, pessoal! Cocada macia, nutritiva e medicinal! Indicada para quem conhece as coisas boas da vida!
- Moço, essa cocada foi feita hoje? - quis saber uma senhorinha.
- Sim! Estão todas fresquinhas! Pode pegar!
- Tia, meu pai fez essas cocadas anteontem! Eu ajudei ele! Foi na hora do jogo!
Bem que o pai pedia ("não fale nada, filho!"), mas Manoel tinha o instinto da verdade bastante aflorado. E, de certa forma, as pessoas gostavam daquela dupla. Não raro, o pai conseguia vender tudo antes mesmo da hora do almoço.
Rio de Janeiro, 2044.
Passados vinte anos, as coisas pouco mudaram na cidade. Quem pensava que teríamos carros voadores, robôs domésticos e viagens de teletransporte, quebrou a cara. As mazelas eram as mesmas de cinquenta, cem anos antes. Mendigos moravam nas ruas, a criminalidade seguia intocável, a insegurança era o cartão-postal da cidade, e os trabalhadores perdiam cada vez mais seus direitos. Com a extinção da carteira assinada, não havia mais décimo terceiro nem FGTS. Ou seja, o pessoal guardava o dinheiro de todas as formas, principalmente gastando pouco.
Com isso, os vendedores de trem não eram tão intensos como antes. Suas vendas foram bastante prejudicadas pelo novo modo de vida das pessoas. Via-se, quando muito, dois ou três sujeitos por vagão anunciando chocolates, balas e doces. Os próprios vagões eram velhos. Tinham trinta anos, perderam o ar condicionado e quebravam com frequência. Mesmo nesse cenário nada animador, Manoel, então com vinte e seis anos, e professor de História, fez questão de levar seu filho para andar de trem pela primeira vez.
O menino não estava curtindo o passeio. Até o momento em que entrou um vendedor de trem, mais ou menos da mesma idade que Manoel, anunciando seus produtos com pompa e entusiasmo.
- Chegou o Imperador do Trem, senhoras e senhores! E trago para vocês sanduíches naturais feitos com ingredientes importados! Tem sanduba de frango suíço, atum russo, queijo americano e shitake africano!
Nisso, surgiu uma figura até então imperceptível: um molecote atrás do vendedor, que falava com ar professoral.
- Importados? Pai, tudo isso foi comprado no Mercadinho do Rosivaldo...
- Shhhh... fala baixo, Cotôco!
Manoel sorriu. Ele viu o próprio pai na figura do Imperador do Trem e se viu naquela miniatura de gente apelidada de Cotôco. Sem pensar muito, ele chamou o vendedor.
- Me dá um sanduba de frango suíço.
- Opa! Seu pedido é uma ordem!
- Mas é suíço mesmo?
- Claro! Ele cacarejava em suicês como poucos!
- Tá certo. Fique com o troco.
- Obrigado, chefia!
No auge dos seus sete anos, o filho de Manoel ficou indignado com aquela compra.
- Frango suíço, pai? É sério?
- Não faço ideia. Deve ter vindo da mesma fonte do coco africano.
- Que coco é esse?
- Era muito especial! Se liga, era uma vez, ainda na época da internet em 5G, pai e filho...
Edu Soares