Ficar de costas
Andar de ônibus - ao menos para mim - é uma experiência agridoce. Gosto de estar num ônibus com ar condicionado, me sentar e me distrair durante meu trajeto. Nesse cenário, o coletivo é uma vivência doce. Talvez seja uma preferência estranha da minha parte, mas me apetece. Porém, se você procurar pela palavra agridoce no Google (assim como eu fiz), vai descobrir que agridoce significa algo amargo e doce. O que há de amargo em andar de ônibus?
Nesta terça-feira (14/05/24), peguei o transporte público. O destino não importa, pelo menos não nesta crônica. Era por volta das 7 da manhã e estava chovendo, o que, presumo, deprimiu o humor dos passageiros em geral, motivando semblantes apáticos em cada rosto. Se o veículo tivesse poucos tripulantes, seria uma maravilha, mas se você é fortalezense como eu (ou mora em alguma cidade grande ou metrópole) sabe que aquele horário é o horário da capacidade máxima.
As pessoas subiam no ônibus a cada vez que o motorista parava nos pontos de ônibus, e na proporção que o veículo se recheava, iniciava-se uma disputa silenciosa por espaço no transporte. Mãos procurando barras, esticando-se sobre as cabeças proletárias. Corpos caçando espaço.
E lá estava eu, um daqueles corpos, desconfortável com a umidade (lembre-se, choveu) e o excesso físico ao meu redor. Estava em pé, com o corpo quase colado, rente a algumas cadeiras. Eis que uma mulher encontrou espaço atrás de mim, encostando em mim. Congelo aqui o relato. Essa é uma experiência que me transtorna. Especificamente essa experiência: Estou fazendo esforço muscular para deixar o corredor livre, aí chega outra pessoa e ocupa o espaço a ponto de fazer contato corporal comigo.
Talvez por falta de habilidade minha, ou falta de experiência do leitor com ônibus lotado, talvez você não entenda a imagem que elaborei. Imagine que você está sentado num pequeno banco de praça, com espaço para apenas duas pessoas. Passa um transeunte, senta e abre as pernas, invadindo despreocupadamente seu espaço. Ficaria desconfortável? Se sim, essa foi minha reação. Imaginava que a pessoa tinha espaço, mas preferia colar o corpo de costas com o meu. Pode ser revolta barata, egoísmo ou insensibilidade da minha parte, que o leitor me julgue, mas quando isso ocorre, penso algo parecido com "como é possível que eu esteja fazendo esforço para deixar o corredor livre, e esta pessoa não?".
Penso que nossas dores cotidianas têm muito a ver com aquilo que é importante pra gente, tem relação com os nossos valores. Um moralista, pode se incomodar profundamente com a prostituição, pois a moral cristã é algo importante pra ele. Um policial pode se sentir muito mal vendo algum delito ou um desrespeito à corporação. Um jornalista pode sentir vontade de roer um serrote com os dentes ao ver um colega de profissão publicando notícias falsas, pois a ética jornalística é importante pra ele. Creio que o leitor me compreenderá: Angústia e emoções aversivas são indicativos de nossos valores.
Pense: O que te incomoda nos outros, e por que te incomoda? Não quero neste texto bancar o santarrão sempre bem intencionado. Todas as pessoas têm os seus demônios e tenho os meus, mas puxa vida, da mesma forma que eu estava respeitando o espaço dos outros, queria que ela respeitasse o meu. Talvez seja por eu me preocupar com o conforto do outro que me irritei ao ser tocado. Tocado sem necessidade, no meu ponto de vista.
Caso o leitor já esteja entediado, sugiro que pare de ler, vou tentar reencenar o xadrez mental que joguei naquele momento contíguo. Se você se cansa em seus autodebates, talvez se canse com o meu. O aviso foi dado, descongelemos a cena.
Comecei a verificar o ambiente para verificar aquela situação, ver se fazia sentido aquela minha frustração. Olhei pra trás, era uma mulher. Olhei uma, duas, talvez três ou mais vezes. Torcia o pescoço para ver quem triscava em mim. Tentava entender se ela não tinha espaço suficiente lá atrás, e que por isso precisava tocar em mim. Queria saber o que se passava por dentro da cabeça daquela mulher pra ficar tão relaxada naquele local.
Vou ser sincero com o senhor leitor, não lembro qual foi o desfecho dos meus pensamentos. Desisti da reencenação. Você concorda que eu não tinha como ter 100% de certeza sobre os motivos das ações daquela mulher? E caso eu tivesse evidências irrefutáveis, o que eu faria com essas informações? Não tinha utilidade aquela discussão mental. Eram pensamentos inúteis pra mim. Às vezes pensamentos são úteis. Eles são agridoces. São palavrinhas dançando na nossa mente. Mas às vezes bailam numa ciranda inútil, e prefiro ficar de costas.