Cortar as unhas
“Cortar as unhas”
São seis da manhã. Sábado. Sei que a cirurgia começa as nove. Rapidamente fui ao banheiro, depois li o jornal local e não tomei café. Estou de jejum absoluto. É, desta vez eu sou quem vai ser operado. Coluna. Hérnia de disco. L4-L5. Nucleoplastia.
Sentado estou na beira da cama. Todos ainda dormem. O dia já raiou. Pego a tesourinha. Uma Vichy, foi do meu pai. Detestava a comum e boa Mundial. Tiro a sujeira lateral. Ritual secular. Hoje tem coletivo de pólo-aquático na OAB. Domingo, o dia inteiro para amar minha mulher. Segunda; escovação, luvas, vídeo-laparoscopia. Ou quem sabe um parto a qualquer hora?
Daqui a pouco vou sair. Meu carro novo que comprei e nem sei quando irei dirigir. Começo pela mão direita. Pelo quinto dedo. Por que faço isso? Sou canhoto, esse é o meu jeito habitual. Não, JB; por que corta as unhas que não vai utilizar de imediato?
Gosto bem fundo, às vezes sangra. As crianças fogem de mim quando digo que irei cortar as suas unhas. Corte reto, sem curvinhas. Margareth já acordou, levanta e vai. Finjo não perceber. Dou uma volta lenta pela casa, beijo meus filhos. Silêncio.
Troco de mão. A esquerda é mais difícil, deixo o polegar por último. Cruzo as pernas –que tantas corridas me deram- e vou podando os excessos. Incrível, mas nos pés eu começo pela esquerda. Minha esposa me chama.
Não me movo. Estou francamente concentrado. Deixo como prazer final seccionar os dedões. Estilo bem definido. Para não encravar. Aprendi com a dermatologista ao lado. Desta vez já ouço que poderei me atrasar.
- O que você estava fazendo? Já está tudo arrumado desde ontem. Agora deu para enrolar?
- Não. Estava contando as unhas, muito importante.
Silêncio. Vi que nervosa com o fato de que daqui a poucos momentos entrarei em uma sala para ser submetido a uma delicada intervenção neural, nem estendeu a conversa.
Mas eu explico para vocês, meus amigos. Cortei as unhas no sábado, como há infindáveis semanas o faço, mesmo sabendo que não teriam serventia. Simplesmente porque o mundo pode mudar, e até eu. Mas os meus sonhos, nunca. Vou continuar jogando pólo, operando as pessoas e arranhando as costas de quem desejo. No mais, é só uma questão de tempo...
JB Alencastro