A DESPEDIDA

Em 1962, meu pai, então sargento do exército brasileiro, foi transferido do TG 217 (Miracema, RJ), para o 3º Batalhão de Caçadores (38º BI). Uma vez aqui no Espírito Santo, nós fomos morar na Glória, um bairro pelo qual tenho grande carinho e memórias indeléveis.

São inesquecíveis algumas coisas vistas e vividas ali: a linha de bonde que margeava o morro da Manteigueira, o aroma dos chocolates Garoto que impregnava as minhas narinas de menina pobre (eu estudava no Grupo Escolar “Naydes Brandão”, que ficava exatamente em frente à fábrica), e as muitas vezes em que dona Amélia (nós achávamos que ela era uma bruxa) corria atrás de mim e das minhas amiguinhas, “apenas” porque nós havíamos pulado a cerca de sua chácara urbana para “roubar” mangas, goiabas e/ou cajás.

Glória é sem dúvidas um bonito nome, não apenas pela sonoridade da palavra, (a gente enche a boca para falar), mas porque é sinônimo de “honra, fama, celebridade, adquirida por obras, feitos, virtudes e talentos”. Coincidências ou não, todas as que conheci ou conheço são pessoas muito queridas, cordatas, divertidas, verdadeiramente do bem. Eu costumo chamá-las carinhosa e divertidamente de “Godoia”, “GRória”, “GRorinha”....A protagonista desta crônica, contudo, eu pouco conheci pessoalmente, embora diversas vezes tenha sabido sobre suas peripécias, por meio de um dos seus filhos, por quem tenho um imenso carinho.

Soube que, certa vez, o pai, a mãe, o filho e as três filhas resolveram ir a São Mateus, de ônibus, visitar familiares. Naquela cidade, o chefe da família acabou adquirindo uma motocicleta e dois capacetes daqueles que são presos por cintas jugulares. Trazer o veículo para Linhares seria simples: bastaria embarcar os filhos em um “busão” da Águia Branca, ajustar um capacete em si, entregar um igual para dona Glória, abastecer e partir.

A viagem transcorria normalmente, até que os passageiros do lado direito, começaram a olhar pelas janelas e a rir muito. Curiosos, os filhos do casal se levantaram e descobriram a causa das gargalhadas: o pai estava cortando o ônibus, buzinando (talvez para chamar a atenção dos filhos), tendo na garupa dona Glória, usando o capacete ao contrário: a viseira estava voltada para as costas e o rosto no local onde deveria estar o pescoço.

Nossa protagonista era um ser humano ímpar, daqueles que interpretam literalmente fatos e/ou notícias, originando situações hilariantes. Certa vez ela chegou em casa com um pacotão de pães, revoltadíssima, porque lera em um cartaz na padaria, que a partir daquela data os pães franceses não mais seriam vendidos por unidades e sim por quilos. Isso mesmo: ela comprou UM QUILO DE PÃO para si e duas filhas tomarem café. Rs,rs,rs...

Outro fato inusitado aconteceu quando ela ganhou de presente uma televisão colorida, de controle remoto. Após ser informada que aquele aparelhinho é que mudaria os canais, aumentaria ou diminuiria o som da TV, ela passou a usá-lo para esses fins, mas como ninguém enfatizou que tudo poderia ser feito à distância, ela continuou se levantando do sofá, chegando pertinho da televisão e apertando o controle para fazer o que desejava.

Recentemente, enquanto cozinhava feijão para o almoço, ela sentiu-se mal: suas pernas amoleceram. Percebendo que não conseguiria, nem mesmo, desligar a panela de pressão, ela telefonou para o genro, explicou como se sentia e pediu que ele fosse até sua casa.

Em pouco minutos começou o socorro, mas, infelizmente, em poucas horas Dona Glória não estava mais entre nós. Levada para autópsia, o laudo apontou que um aneurisma da aorta se rompera, explicando por que, de imediato, suas pernas haviam se paralisado: esse fenômeno diminui o fluxo sanguíneo dos membros inferiores.

Informada sobre o fato, fui prestar minha solidariedade à família nos dois rituais que sucedem os falecimentos. No último deles, meu amigo fez uma despedida que me tocou profundamente:

“Quando eu era pequeno, você me ensinou muitas coisas, mãe: a comer, a beber, a me banhar, a me comportar... Depois eu virei adulto, eu tive de aprender outras coisas com a vida, algumas a duras penas, e continuo aprendendo. Há algo, porém, que eu nunca lhe disse que aprendi com seus exemplos, mãe: aprendi a entender melhor e a respeitar os diferentes, aprendi que todos têm algum valor e merecem respeito, aprendi a sentir um pouco da dor do outro, e tudo isso me tornou mais humano. Muito obrigada, dona Glória, muito obrigado, minha mãe.

Ouvindo esse depoimento, chorei copiosamente, convencida de que toda mãe gostaria de ouvir algo similar em situação análoga. Então, agradeci a Deus por ter permitido que dona Glória tivesse estado conosco por alguns anos, tivesse nos feito rir muitas vezes e tivesse legado ao mundo filhos e netos maravilhosos, dentre os quais aquele que eu adoro: o Sérgio Noé.

NORMA ASTRÉA
Enviado por NORMA ASTRÉA em 14/05/2024
Código do texto: T8063297
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