Entre Sem Bater - Escravizados

Makota Valdina disse:

"... eu não dou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados ..."(1)

Makota Valdina foi pioneira no seu tempo(*). Certamente, quando se qualificou para ser educadora, colocou em prática seus dons educacionais. Sua percepção de como os descendentes de africanos sofriam maus tratos lhe deu, com toda a certeza, a experiência para educar.

ESCRAVIZADOS

Em primeiro lugar, a questão inicial da frase de Makota diz respeito a como muitos nos referimos a nós mesmos. Particularmente, demorei muito tempo a parar e pensar porque muitos descendentes de africanos não se enxergam como tal.

DESCENDENTES DE ESCRAVOS?

Devemos nos referir a nós mesmos como descendentes de escravos ou descendentes de seres humanos escravizados?

O tema é relevante, pois tem compreensão profunda em nossa percepção do passado, do presente e do futuro. A resposta curta e evasiva é que ambas as opções estão corretas, mas revela um grande equívoco presente no Brasil.

A expressão "descendentes de escravos" destaca a condição de escravização como a característica mais importante de nossos ancestrais. Isso pode significar que a nossa percepção cognitiva define a subordinação a outros seres humanos que tratavam os escravizados como propriedade.

Por outro lado, não devemos confundir com a posição de descendentes de escravizados que são negacionistas quanto ao racismo e escravidão. Mesmo que alguns descendentes de africanos tentam menosprezar movimentos de raízes africanas, não devemos deixar o debate.

Portanto, debater é uma forma de afirmar que nossas raízes estão em um passado de opressão e desumanização comprováveis. E se seres humanos ainda escravizam outros seres humanos diretamente ou indiretamente, esta é a pauta do debate.

DESCENDENTES DE SERES HUMANOS?

Quando Makota atribui para si a condição de "descendente de seres humanos" sob uma escravidão, ela me representa. E a questão de fundo não deve cair no esquecimento jamais.

Por outro lado, a frase destaca nossa humanidade, acima de tudo e acima de opiniões que prevalecem pela força ou poder da mídia. Isso reconhece que nossos ancestrais eram seres humanos sob o controle de outros seres humanos. Embora essa condição não os definia completamente, em hipótese nenhuma e o subjugo existia, como ainda é, pela opressão.

Desta forma, podemos afirmar que nossas raízes estão na humanidade compartilhada com todas as pessoas, independentemente de sua história.

ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA

A data de 13 de maio tem uma significação bastante questionável. Desde os abolicionistas e monarquistas, a questão teve grandes polêmicas, que culminaram na atual cultura social brasileira. Chegamos ao fundo do poço quando negros, descendentes de escravos, são negacionistas em relação à escravidão no Brasil.

Como se não bastasse, submetem-se a regimes opressões, análogos à escravidão. É provável que a escravidão mental(2) seja uma doença incurável.

LEI ÁUREA

A assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, é uma celebração questionável como marco da abolição da escravatura no Brasil.

Assim sendo, uma análise mais profunda revela que essa narrativa está longe de ser a realidade, além dos livros. A Lei Áurea não foi o resultado de um movimento progressista pela emancipação e igualdade. Pelo contrário, foi uma medida política que originou nas elites dominantes para preservar seu poder e status. E, desse modo, perpetuou disfarces para continuidade da opressão sobre negros e indígenas.

Em primeiro lugar, a abolição da escravidão através da Lei Áurea não foi uma concessão voluntária das elites. Em outras palavras, foi uma resposta às pressões internas e externas das oligarquias políticas e econômicas. A crescente resistência dos escravos, aliada à pressão internacional contra a escravidão, colocou as elites dominantes em uma posição insustentável. Confrontadas com a possibilidade de tumultos sociais generalizados e sanções comerciais internacionais, elas optaram por abolir a escravidão como uma medida de autopreservação.

No entanto, a abolição não proporcionou políticas significativas de inclusão social ou econômica para os que se "libertaram". A falta de terras, educação e oportunidades econômicas deixou muitos negros em uma situação de vulnerabilidade extrema. Em outras palavras, a maioria dos que conseguiram a liberdade sofriam com formas sutis de exploração e discriminação. Outrossim, a abolição não abordou as estruturas sociais e econômicas como a desigualdade racial, o latifúndio e o trabalho assalariado precário. Surpreendentemente, ainda hoje, são as mesmas questões que exigem políticas públicas que nunca atendem a quem precisa.

ABOLIÇÃO FAKE

Em vez de promover a igualdade, a Lei Áurea serviu para consolidar o poder das oligarquias agrárias. As diferentes oligarquias controlam vastas extensões de terra, meios de comunicação, transportes, agronegócio. Desta forma, subjugam a mão de obra através de formas alternativas de exploração, como o terceirização, parcerias e pejotização. Essas formas de opressão, embora menos visíveis do que a escravidão formal, mantiveram os negros e outras minorias no submundo.

Além disso, a abolição fake não abordou a questão da reparação histórica para os descendentes de escravos. A limitação de seus direitos humanos básicos durante décadas de exploração e violência ainda persiste. A ausência de um programa abrangente de justiça social e reparação perpetua as desigualdades estruturais na sociedade brasileira contemporânea.

Por isso, a Lei Áurea marcou o fim formal da escravidão no Brasil, mas não representou a realização dos ideais de igualdade e justiça. Pelo contrário, foi uma medida política destinada a preservar o poder das elites dominantes. Adicionalmente, deixou intactas as estruturas de opressão que continuaram a marginalizar negros, indígenas  e pobres no Brasil.

A segregação é tamanha que até entre povos de origem diferente, como sulistas e nordestinos existe o preconceito e a ideia de submissão.

ESCRAVIDÃO E HUMANIDADE

Uma vez que a dúvida e o antagonismo é presente inclusive dentre escravizados, escolher uma opção pode não ser simples.

Então, qual é a opção e forma de sermos mais precisos na identificação e autodenominação?

Será possível ambas serem verdadeiras e precisas, mas em contextos diferentes?

Com toda a certeza, a resposta é um sonoro NÃO !

Os áulicos, quando querem enfatizar a opressão, sempre utilizaram a expressão "descendentes de escravos". Isso ajuda com que eles escondam a desumanidade, como nos delitos criminosos de trabalho análogo à escravidão. Desse modo, encobrem que a escravidão é uma instituição profundamente desumana e degradante.

Por outro lado, ao enfatizar a humanidade e a resiliência de nossos antepassados, "descendentes de seres humanos escravizados"  é o correto. Mesmo que isso nos faça lembrar da opressão, nos lembra que seres humanos têm direitos naturais.

Nossos antepassados resistiram e lutaram por sua liberdade e justiça, e essa luta continua até hoje, contra o trabalho escravo

Os escravizados, quando conseguem, devem reafirmar que temos a capacidade de resistir e lutar por um futuro melhor e mais humano.

Portanto, somos seres humanos com todas as complexidades e nuances que isso implica seja em relação à raça, religião e outras escolhas.

Devemos sempre honrar a memória de nossos antepassados e continuar lutando pela consciência negra(3), liberdade de opinião, expressão e ação.

Em suma, seja no caso do passado, ou no presente com casos de trabalhadores presos e escravizados, devemos nos opor e reagir. Os déspotas e seus capatazes devem ser alvo de denúncia e condenação, e que paguem pelos crimes que cometem.

"Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*) Este texto é uma homenagem a Makota Valdina que exerceu o pleno ativismo político e a defesa de seus ideais. Muito recentemente, o governo de Portugal admitiu a exploração dos brasileiros e cogita alguma forma de reparação pelos abusos seculares.

(1) "Entre Sem Bater - Makota Valdina - Escravizados" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/13/entre-sem-bater-makota-valdina-escravizados/

(2) "Entre Sem Bater - Bob Marley - Escravidão Mental" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/06/18/entre-sem-bater-bob-marley-escravidao-mental/

(3) "Escravidão Eterna x Consciência Negra" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2019/11/20/escravidao-eterna-x-consciencia-negra/