uMÁ CRÔnica: - ser civilizado!
uMÁ CRÔnica
Hoje, eu ri ao compreender que sou ser civilizado.
Ser civilizado, sim! E a quinze metros debaixo da terra,
junto a outros seres. Gente espremida e se espremendo,
comprimida e apressada a passos lentos.
Ri, ao lembrar-me com certa nostalgia de quando eu era bicho e,
junto a outros bichos, andava livre pelos pastos tomando água na bica.
A testa suada. O corpo suado. A garganta seca. E, a água borbulhando no solo:
límpida, pura e cristalina. Debruçava-me com quatro patas.
A boca dentro dágua sorvendo aquele líquido frio e cristalino.
O corpo refrigerado.
Mas hoje! Hoje sou ser civilizado lembrando-me das corridas pelos campos
e do estômago pedindo-me comida. A casca, arrancada a dentes.
A polpa doce escorrendo pelos cantos da boca. Bons tempos de bicho, aqueles.
Pés de goiaba. Goiaba vermelha. Cheirosa. Das boas...
As bananas na bananeira. Pés de Ponkan, laranja-lima, baiana, pêra...
E as pereiras. Quantos frutos. E eu, um bicho correndo entre outros bichos
atrás de uma bola. Pique-esconde. Salva-latas. Mãe-da-rua. Pula-cela.
Mocinhos e bandidos perdendo-se pelas entranhas das matas. Tantos tiros, e
ninguém morrendo. Bicho não sente ódio. Ou será que sente?
Ainda existia cipós, vagalumes, sapos-boi, pererecas, lacraias...
Quantos risos e quantos bichos...
Mas hoje! Hoje sou ser civilizado. Tenho internet, celular, carro importado...
Não corro mais descalço atrás de pipas. Já não corro. Uso calçado importado.
Europeu em couro de jacaré do pantanal matogrossense.
Cipós ? Coisa de bichos. Hoje tenho big-jump, rapel, cama-elástica...
Já não me banho no riacho da vila que virou cidade.
Nem pesco na lagoa do seu Thomás. Seu Thomás morreu. Morreu também o lago.
Que importa? Tenho SPA!
Quantas lembranças... Mas, de que me valem?
Eu era bicho montado em outro bicho cavalgando pelos cerrados e campinas.
Tomava leite no mangueirão. Quentinho. Saído na hora. Espumoso e puro.
Hoje? Hoje sou ser civilizado. Tomo leite de caixa. Homogeneizado.
Quimicamente tratado. Noventa dias de validade.
Compro num hipermercado comida de gente. Ração humana.
Tudo lavado. Embalado. Tratado geneticamente. Goiabas sem bicho.
Mangas, todas do mesmo tamanho. Cenouras, todas da mesma cor...
Já não sinto o gosto. Mas gente não sente o gosto. Ou será que sente?
Deixei de ser bicho para ser civilizado.
Já não faço minhas necessidades na fossa cavada à força. Hoje tudo é encanado.
Saneamento básico. Tudo caindo no riacho da vila que virou cidade.
Que importa? Sou gente.
Já não brinco mais de mocinho e bandido.
Perdeu a graça. Hoje todos se matam. São gente.
Ri. Ri sem saber porquê.
Já não tenho mais a bica nascendo no pé do morro.
Hoje é água tratada. Clorificada. "Fluorificada", ou seria fluoretada? Vem da lagoa do seu Thomás.
Mas dizem que não faz mal porque é esgoto tratado.
Ri... Compreendi a quinze metros debaixo da terra que sou ser civilizado. Gente...
Gente a passos curtos e apertados. O ar angustiante e pesado.
A pressa congestionada.
O mugido surdo das vozes e da indiferença dos seres civilizados.
Mas, que importa? Descobri enfim que sou gente junto a massa de gente
ao passar por entre a cerca de alumínio e lembra-me dos bois voltando ao
mangueirão e se acomodoando entre as tábuas do curral. Gente amontoada.
Comprimida. Espremida e falando num surdo mugido.
Dizem que é pra melhorar o fluxo de passageiros.
Segurança para a civilidade...
Ah... Sim. Virei gente!
Deixei de ser bicho. Sou ser civilizado no curral subterrâneo da civilidade.
Por isso, insensível à jovem pisoteada ao sair do trem;
impassível ao senhor desmaiado por faltar-lhe ar;
inexpressivo ao ver um povo morrendo de fome,
humilhado, oprimido e escravizado.
Sou gente!
E só bichos sabem que são um com a natureza.
Só bichos lutam e defendem a sua espécie.
Só bichos anseiam e lutam por sua liberdade.
Moses Adam
Ferraz de Vasconcelos, 0906/2010
Início – Estação Metrô-Luz, manhã de segunda-feira – 06h10