O Filho da Desquitada

Julio Arthur Marques Nepomuceno (*)

JorgeH era pouco mais que um adolescente, batendo às portas da juventude, quando foi morar na pequena cidade de Colina Feliz. Foi uma mudança um pouco inesperada, como quase tudo o que acontecia em sua vida. Era um tanto quanto atrapalhado, mas procurava se adaptar às novas circunstâncias, e logo fez alguns amigos em sua nova morada.

Mas foi nessa época que JorgeH conheceu um pouco mais da realidade daqueles tempos. Ele passou a ser o filho da desquitada. Sua mãe havia se separado do marido e naqueles tempos não existia o divórcio, mas sim o desquite, aquele estado civil em que a pessoa estava separada do seu cônjuge mas não podia contrair novas núpcias, pelo menos formalmente. Claro que informalmente, muitas pessoas tentavam reconstruir suas vidas, viviam naquilo que era chamado jocosamente de concubinato, mas escolhiam continuar seu caminho, apesar de toda a reprovação social. Poucos anos depois, viria a Lei do Divórcio, para regularizar a situação civil dessas pessoas.

A mãe de JorgeH estava nessa situação ambígua, desquitada e convivendo com novo companheiro. O filho morava junto, e trabalhava bem com a situação. Estudante, só não queria que a mãe desse palpite em sua vida. Nem sempre foi o que aconteceu mas como era de boa lua, não criava caso.

Fez bons amigos naquela comunidade, porém sentiu também a reprovação social por ser o filho da desquitada, e ainda por cima amasiada... JorgeH não entendia por que essa reprovação, além de desnecessária, se estender a ele. Sim, ele também sentiu na pele a reprovação por ousar nascer do ventre de uma mulher que no futuro seria desquitada e ainda por cima amasiada.

Era considerado culpado por isso, má companhia, e as mães de muitas meninas daquela cidade advertiam as filhas: - Não se misture com o JorgeH, ele é filho da desquitada, é uma má companhia, é uma ameaça para a moral e os bons costumes... Algumas ouviam, outras davam risadas, afinal, JorgeH não parecia ser um tipo perigoso. Estudante, humilde, reconhecidamente pobre, tinha lá seus defeitos, é certo, mas nada que justificasse essa marca a ferro e fogo imposta pelas mães conservadoras daquela comunidade.

É bem verdade que muitos não pensavam assim. Era bem recebido em muitas casas, gostava de um bate papo e de jogar cartas com colegas de sua idade e também com os mais velhos. Estava se considerando enturmado com a maioria das pessoas daquela pequena cidade.

Mas havia resistências... Certo dia, comentou com alguém que estava gostando de uma jovem, uma das irmãs Coragem, muito conhecidas naquele local. Eram de uma família tradicional, muito religiosa, pessoas que viviam há gerações naquela localidade em um casarão na rua principal. Segundo diziam, local onde nunca houve um escândalo ou qualquer mácula que pudesse manchar a vida daquele clã.

Logo, vieram os conselhos. A veneranda avó e a mãe da moça a advertiam a se afastar de JorgeH. Na verdade, parece que a jovem nem estava interessada no forasteiro, mas só o fato de JorgeH ter feito uma referência à garota, já foi motivo para tomar precauções naquele imaculado lar. Afinal, como poderiam aquelas portas abrir para a entrada do filho de uma mulher desquitada e amasiada?

JorgeH não se impressionou muito, e logo se afastou da família. Até porque não mais o cumprimentavam, era uma espécie de leproso, alguém que pudesse contaminar a santidade daquelas pessoas. Só não entendia o porquê daquela desconfiança...não dera motivos para isso. Mas no fundo, sabia a razão: era o filho da desquitada. E isso doía para ele. Experimentou o que era o preconceito. Descobriu o que era o repúdio social por algo que não era sequer de sua responsabilidade. E mesmo assim, era considerado um temerário, um iconoclasta, um perigoso personagem.

Meses depois, precisou mudar de cidade novamente, em meio a mais um turbilhão em sua vida. Resignado, despediu-se dos amigos e foi embora.

Anos depois, já adulto, chefe de família e respeitado profissional, resolveu voltar a Colina Feliz, para rever os amigos. Encontrou muitos deles, outros já tinham mudado para outros centros, e alguns já tinham chegado ao final da existência.

Antes de voltar para casa, foi tomar um café com um amigo daqueles tempos, o Lenildo, pessoa muito estimada e de quem tinha sinceras saudades.

Lenildo tinha a língua afiada, e logo começou a rememorar alguns fatos da curta passagem de JorgeH pela cidade. Comentou do clube que frequentavam, da roda de amigos batendo papo na praça até altas horas, e coisas do tipo.

Até que JorgeH teve uma lembrança dos velhos tempos e perguntou, curioso, sobre as irmãs Coragem. Lenildo deu uma sonora gargalhada, e lembrou das paqueras do amigo e do preconceito que ele havia enfrentado. Mas era um dos poucos que sabia dos detalhes daquele caso, pois eram grandes amigos.

- O casarão não é mais tão imaculado assim, disse Lenildo. Já teve briga na porta, quando a sua antiga crush estava comemorando o aniversário festivamente, com a presença do noivo. A outra – sim, a outra do noivo - bateu na porta, e fez o maior barraco. Dizem que a pequena Colina Feliz até tremeu com o escândalo. Disseram até que o último baluarte da moral e dos bons costumes havia caído.

- Puxa, disse JorgeH, que triste. Mas devem ter superado a desventura.

Lenildo sorriu ironicamente. – Creio que sim. As moças casaram, uma já está separada do marido, e a nova geração é bem mais liberal. Definitivamente, o baluarte da moral e dos bons costumes desabou em Colina Feliz...

JorgeH ainda passou a noite naquela cidade. Tinha alguns compromissos, algumas pessoas para visitar.

No dia seguinte partiu. E no caminho foi pensando: - mundão véio sem portera... Quando que ele poderia imaginar uma coisa dessas? Cabisbaixo e sonolento na poltrona do ônibus, foi poucos foi vendo as colinas ficarem para trás.

(*) Julio Arthur Marques Nepomuceno sou eu

Julio Arthur Marques Nepomuceno
Enviado por Julio Arthur Marques Nepomuceno em 11/05/2024
Reeditado em 21/05/2024
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