Pedra

Quem escreve devia ver poesia em tudo, pensei eu, um dia desses. Em mais um dia que não conseguia escrever nada. Um escritor devia escrever todo dia, mesmo sem vontade. Ou então escrever devia ser uma necessidade básica, como respirar. Para um escritor não devia haver alternativas, além de registrar dia após dia tudo que lhe apetece, que lhe estremece, que lhe consome dia após dia.

Então me deparei com o poema de Adélia Prado, paixão. Ela começa dizendo, “de vez em quando Deus me tira a poesia, olho pedra e vejo pedra mesmo.” Então percebi que Deus vive pregando essa peça por aí. Acho que fui a escolhida dessa vez. Por todo lado só estou enxergando pedra mesmo. Não está dando para tirar leite nem poesia delas. Mas não escrever causa uma ânsia profunda às vezes. Uma angústia de síndrome do impostor. E parece que está escapando de mim uma habilidade que eu julgava ter. Mas talvez, não seja por acaso eu estar aqui de frente para o notebook, ainda acreditando nesta paixão impossível, até o fim, espremendo palavra por palavra. Acreditando em cada uma delas, tendo fé que elas façam sentido.

Estou deixando simplesmente fluir. Porém, Deus me livre isso ser classificado como “escrita terapêutica”. Só porque decidi encarar a pedra e aceitar que ela é apenas uma pedra, cinza e dura? Uma matéria mineral sólida. Concreto puro. Há dignidade em sua existência, ela estando ou não no meu caminho. Vou aceitar a pedra, inteira. Sua natureza das rochas. Sem pensar em nada que modifique a sua essência. Que ela seja simplesmente um componente sólido da crosta terrestre. Talvez o simples fato de chamá-la de pedra já seja uma poesia. Então me detenho apenas nos termos técnicos. Sem ser invadida por pensamentos sobre o processo que origina a sua formação, sendo antes de tudo terra. Aquela que sai do manto através da erupção vulcânica. Pois esse movimento por si só, já seria poético.

Deus me fez olhar a pedra e ver a pedra, e passei mais de um mês sem escrever acreditando carregar a pior das aflições para um escritor, quando você não consegue mais transformar a pedra em nada. Ela permanece ali, inteira. Então, só me restou falar sobre o que sinto no momento. Sem britadeiras em mãos, para espatifar a pedra em mil pedaços, sem fazê-la arremedo de Drummond ou qualquer poeta que o valha. Não sei até quando vou olhar a pedra e ver pedra mesmo. Floreios e metáforas são lindos, mas às vezes nos cabe também a tarefa de escrever o óbvio.

Tiane Maga
Enviado por Tiane Maga em 07/05/2024
Código do texto: T8058523
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.