Sombra e Luz
Com uma espécie de magnetismo, a ladeira da General Osório atraia uma multidão livre e diversa: de professores liberais a pessoas trans, de binários a estudantes de física e história, de pedintes e bêbados era composta aquela massa.
Iniciava-se o festejo tarde, e às dez da noite, se a cerveja não tivesse feito ainda sua função de socialização, era o momento de ir além: a mente precisa entorpecer-se, afinal, como iríamos sair daquela labuta? Um ostracismo, eis o que era o trabalho. Um vai e vem de lugares-comuns. E se a repetição trazia um enfado, então a variabilidade daquela rua era o lugar ideal para complementar esse oposto. Chesterton que me perdoe, mas não há em absoluto algo melhor para quebrar o puritanismo do que uma boa dose de heterodoxia.
Se meus pais me avistassem por aqui, certamente se perguntariam exatamente em qual ponto falharam em minha educação, pois não era possível que inúmeros anos de Platão, Sócrates e seu conluio, e de seus ensinamentos grotescos de temperança, fossem insuficientes para converter uma alma tão suja quanto aquela.
Se a filha mais velha era dotada da mais alta cristandade, tão preenchida de virtudes e mimosinhos, que poderia eu fazer como irmã mais nova, que desejava todo um mundo usurpado desde a mais tenra infância? O amor de uma mãe cuja atenção é voltada para somente um dos rebentos, certamente aí está escondida uma torpeza. Da criação paroquial e da primeira comunhão tinha apenas um desejo, que era morder até verter sangue os lábios carnudos das freiras, e como esse desejo era demasiadamente irrealizável, sendo as mentes insondáveis das beatas um muro muito difícil de transpor, procurava neste ladeira abarrotada de gente rememorar aquela lascívia, aquele desejo reprimido. Transferiu-se uma vida virtuosa para aquilo que se via ali: por isso concordo com nosso russo preferido e conduzo os dias com a certeza de que toda diversidade, todo encanto e beleza da vida é feita de sombra e de luz. ¹