O céu hoje está limpo

Enquanto colocava meu coturno desinfetado com álcool de volta na janela, no segundo andar do edifício Rondônia, na rua Felipe Camarão, em POA, passava mais um dos tantos helicópteros barulhentos, com prováveis suprimentos ou pessoas resgatadas... .quiçá moribundas...

O som incessante das sirenes parecia gritar nos meus ouvidos da sorte que tive em sair de minha casa, anteontem, pertinho da orla, no bairro Ipanema, após ter todo o primeiro piso tomado por uma água fétida, apavorante em aparência e gana de destruição. Descobri o poder da adrenalina, dopamina e enfim, da serotonina, ao andar por toda a quadra com uma mochila nas costas e uma maleta no alto, com algumas roupas. Com água quase até o quadril... Esqueci das dores que assolam o tendão no pé esquerdo,, um dedo da mão quebrado e outro esmagado por um acidente doméstico de quase um mês. A vontade de sair e deixar pra trás aquele cenário me deu ânimo para andar com aquele calçado embrutecido a me garantir não ferir os pés, mas enchendo daquela água horrorosa ...

Então me vi ali esgotada, mas sabedora de que absolutamente NADA do que perdi valia, ante aqueles milhares de pessoas, centenas de cidades, até hoje computadas, em total angústia e desespero pela própria vida e de seus familiares e conterrâneos , além de crianças, idosos, animais - muitos afogando, pedindo socorro, outros aflitos, tentando salvar os seus.

. .. Vivemos no RS uma zona de guerra, algo sem precedentes. Já vi e vivi algumas cenas pesadas, contudo, o que temos hoje é um cenário de tamanhas proporções que em noticiário algum, segundo meus amigos e parentes, a mídia já mostrou por esses dias e mostra hoje . A força do povo e Estado, através da defesa civil, de empresários, jipeiros, escoteiros, atletas de canoagem, etc e demais pessoas de bom coração tem sido primordiais , como sempre nessas catástrofes naturais (pelas quais, diga- se de passagem, o Homem é o maior responsável). Hoje tenho uma filha de 18 anos há uma semana ilhada, longe, bem longe de mim, sem água e luz por quase a semana toda, porém, e felizmente, acolhida pela faculdade onde estuda, que, com gerador e uma infraestrutura sui generis, onde a água não chega, mas de onde ninguém entra ou sai, pois que não há mais pontes pra se chegar. Não há estradas liberadas ou aeroporto. Lá se protege os quase 800 alunos com acolhida, água e comida, além de ajuda psicológica. Sou uma das raras mães sortudas nessa tragédia toda.! Mas choro, choro muito e sofro por ver tanta tristeza, tão perto hoje e cada vez mais ocorrendo mundo afora. Hoje, moro num Estado destruído . E vejo diuturnamente a força da solidariedade mais uma vez sobrepujando o descaso de governos e o efeito da deseducação da nossa raça "humana " que atravessa séculos e não consegue chegar ao segundo degrau da sabedoria ... Acaba de passar outro helicóptero agora, baixinho. Fico apreensiva. E aliviada, por vezes. Hoje recebemos o aviso de que Porto Alegre precisa ser um pouco evacuada, pelo menos por quem tem casa no litoral, e que leve consigo quem puder. Para aliviar os consumos. Não há água à venda. Nem na minha torneira.

Nao tenho sede só de poesia, mas sede fisiológica aguçada. Agora,, até que se estabilize essa loucura por que passamos, essa, tende a ficar obrigatoriamente regulada. Água potável virou luxo. Há uma derrocada monstra por aqui. Estamos com o abastecimento colapsado . Então, como já ando há um tempo sem abastecimento poético, vou deixar ambas as sedes se acalmarem nesse meu corpo que confesso estar cansado e triste, mas com a certeza inabalável de que nada, nada é ad eternum....

Luzia Avellar
Enviado por Luzia Avellar em 06/05/2024
Reeditado em 09/05/2024
Código do texto: T8057685
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