Entre Sem Bater - A Doença do Século
Fiódor Dostoiévski disse:
"... estar profundamente consciente é uma doença, uma doença real e honesta ..."(1)
Classificado por muitos como "um russo", numa clara demonstração de preconceito, pode levar a que as pessoas não reflitam sobre o que ele escreveu. Conheço algumas pessoas que adoram textos dos russos. É provável que estes que conheçam classifiquem Dostoiévski como um dos maiores da literatura mundial. Suas obras-primas , inquestionavelmente influenciam pessoas e as colocam para pensar.
A DOENÇA
Confesso que tenho muitas dificuldades e cometo muitos erros de português(*). Textos da série "Entre Sem Bater" chegam a registrar até trinta revisões. A maioria é por detalhes como pontuação ou erros de digitação. Entretanto, um problema recorrente que tenho é o de "engolir" artigos definidos e indefinidos. Em muitos casos, um corretor que utilizo ajuda, sobretudo no esquecimento e na concordância. Por outro lado, a diferenciação das nuances e sentido, somente um leitor atento percebe.
O uso dos artigos definidos e indefinidos na língua portuguesa pode parecer sutil à primeira vista. Contudo, pequenos detalhes têm o poder de alterar significativamente uma frase ou pensamento. Desse modo, esta introdução serve para destacar as nuances e diferenças entre o uso de "um/uma" e "o/a" em termos de artigos definidos e indefinidos.
ARTIGOS DEFINIDOS E INDEFINIDOS
Primeiramente, os artigos indefinidos "um" e "uma" referem-se a algo de maneira geral ou não específica. Por exemplo, quando dizemos "uma doença", estamos nos referindo a qualquer doença em geral, sem especificar qual. Desta forma, usa-se este artigo quando não há a necessidade de identificar ou especificar o objeto em questão.
Por outro lado, os artigos definidos "o" e "a" referem-se a algo de forma específica, do conhecimento do leitor ou previamente mencionada.
Quando dizemos "a doença", estamos nos referindo a uma doença específica, que deve ser aplicável ao contexto da conversa. O uso do artigo definido supõe que há um entendimento mútuo entre falante e ouvinte sobre qual doença nos referenciamos.
Assim sendo, esta é a tentativa de explicar a utilização de "uma doença" na frase de Dostoievski, aplicável e pertinente como "a doença" do século. As redes sociais transformaram uma questão de intolerância específica a uma pessoa em círculos restritos, em pandemia do mundo digital.
Ter consciência das coisas, questionar até mentiras, tem um tratamento de doença contagiosa, um quase crime contra a ignorância coletiva. Certamente, ter consciência não é apenas saber ou compreender as coisas(2) de forma genérica, é entender as causas e os efeitos.
VIDA DIGITAL
Os últimos quarenta anos transformaram o mundo mais radicalmente do que os dois séculos anteriores. Notadamente, nos últimos dez anos, os hábitos de seres humanos, dos 4 aos 90 anos de idade, mudaram radicalmente. Em outras palavras, as tecnologias digitais e as redes sociais determinam o comportamento da maioria das pessoas.
Desta forma, é compreensível que estar consciente, sobre qualquer assunto ou tema, pode ter efeitos colaterais perversos.
Uma parte das pessoas descobriu, por exemplo, que fingir-se ignorante é uma ótima estratégia para fugir de conflitos e ataques pessoais. Existem casos, como em recursos humanos, que exigem uma graduação de ensino médio ou cursando superior para contratação. Se um candidato, inadvertidamente, mostra que tem curso superior completo, seu currículo vai para a lixeira, acreditem, é melhor ser ignorante.
A vida digital proporciona muitos benefícios, sobretudo para atividades que, aparentemente, ajudam os seres humanos. Entretanto, em muitas situações, sermos portadores da doença de consciência, com profundidade, ameaça outras pessoas. Primordialmente, farsantes e outros que habitam as redes sociais, praticam ataques a todos que ameacem desmascará-los. E, como se não bastasse, seguidores fiéis destes déspotas digitais transformam-se em haters de quem tenta disseminar alguma verdade.
PENSAR DEMAIS
Houve um tempo em que uma paráfrase do que disse Dostoievski circulou em vários segmentos: "... pensar demais é uma doença ...". Com toda a certeza, é uma das formas de se pressionar as pessoas a agirem sem pensar. Por outro lado, a ideia de que "... pensar não dói ..." parece não ter a menor importância para a maioria das pessoas.
Desse modo, as redes sociais que proporcionam um espaço para expressão e interação, também alimentam uma cultura de conformidade e passividade. Qualquer demonstração de consciência e a capacidade de questionar, mesmo educadamente, são como ameaças às pessoas.
Saber diferenciar ideias, coisas e pessoas, e defender ideias divergentes, sem dúvida, não está no cardápio dos dominantes digitais. Estas propostas e conceituações devem, como disse Machado de Assis, motivar a força da repetição(3). Somente desta forma, repetidamente e insistentemente, conseguiremos algum tipo de triunfo sobre a apologia da ignorância.
A ascensão dos grupos de concordância nas redes sociais cria bolhas ideológicas que, eventualmente, são impenetráveis. Nestes grupos, os indivíduos recebem, primordialmente, opiniões e visões de mundo que confirmam e reforçam suas próprias crenças. Essa dinâmica cria um ambiente propício para a rejeição de qualquer ideia ou perspectiva desafiadora à narrativa de um grupo.
TEMPOS DE IGNORÂNCIA
Nesse contexto, demonstrar que se tem consciência e capacidade de questionar educadamente é um desvio, uma traição a qualquer comunidade. Os valores, crenças, dogmas e proposições dos criadores destes grupos é que prevalecem, e não importam os argumentos.
A pressão para se conformar aos padrões destes grupos de concordância leva, inquestionavelmente, à supressão da individualidade e da voz crítica. Assim sendo, é compreensível que para muitas pessoas, esconder a realidade e evitar conflitos é a melhor estratégia de autopreservação.
Desta forma, quando a honestidade e o caráter desaparecem, em prol da aprovação social, a confiança e a integridade se perdem. Por isso, a disseminação de informações falsas e a manipulação da verdade se tornam cada vez mais comuns. É muito mais fácil compartilhar qualquer coisa, para agradar grupos e pessoas próximas do que apresentar o contraditório.
Além disso, a cultura da conformidade nas redes sociais pode criar um ambiente tóxico onde a intolerância(4) floresce e expande-se. E, consequentemente, a incapacidade de tolerar o dissenso e o debate saudável leva a um empobrecimento do diálogo e à polarização estúpida.
Em suma, é necessário mais do que coragem para desafiar as normas e regrinhas dos grupelhos de redes sociais. Além disso, é essencial uma disposição hercúlea para ouvir insanidades homéricas e considerar pontos de vista racionais e divergentes.
A vida digital empurra a todos para a superficialidade, aparências e frivolidades, e é provável que não nos preparamos para este novo passo(5). A doença do século nos empurra, raramente, para um bom e racional caminho, é o que vivenciamos no mundo virtual e no real.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) Que me desculpem os/as professores(as) de português que tive e dos os professores de português que lerem este texto. Aceito, com o maior prazer, todos os puxões de orelha que tiverem mérito.
(1) "Entre Sem Bater - Dostoiévski - A Doença do Século" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/06/entre-sem-bater-dostoievski-a-doenca-do-seculo/
(2) "Entre Sem Bater - Upton Sinclair - Compreender as Coisas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/30/enter-sem-bater-upton-sinclair-compreender-as-coisas/
(3) "Entre Sem Bater - Machado de Assis - Força da Repetição" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/02/11/entre-sem-bater-machado-de-assis-forca-da-repeticao/
(4) "Entre Sem Bater - Montesquieu - A Intolerância" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/11/27/entre-sem-bater-montesquieu-a-intolerancia/
(5) "Entre Sem Bater - Dostoiévski - Novo Passo" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/02/entre-sem-bater-dostoievski-novo-passo/