MEMÓRIAS DE INFÂNCIA 
Lilian Maial 

 

Lendo a crônica de um amigo, recordei a infância, precisamente quando morei num prédio de muitos andares e apartamentos, mas poucas meninas. A grande maioria das crianças da minha faixa etária era de meninos, então, eu tinha duas opções: ou ficava em casa brincando sozinha, eventualmente com uma amiguinha, ou me juntava aos garotos e suas brincadeiras. Não era muito comum os meninos aceitarem que uma garota entrasse na patota, no entanto, sempre fui muito adaptável, era moleca, cabelo bem curtinho (mamãe não tinha tempo para ficar horas penteando as filhas, pois trabalhava o dia inteiro), vivia de short e camiseta, então, não era o estereótipo da menina comportada, de rabo-de-cavalo, vestido cor-de-rosa e sapatinho boneca. Talvez por isso, ou pelo fato de eu desafiá-los, que os meninos me aceitavam. Eu já sabia jogar bolinha de gude e soltar pipa, graças a primos com quem eu frequentemente brincava aos domingos. Sabia também jogar botão e tinha até um time do Fluminense, todo de madrepérola.  Daí, sem forçar muito a barra, ia me chegando com meu arsenal. Os guris se entreolhavam e davam risinhos de canto de boca, pensando na otária que estava para perder todas as bolinhas de gude. Tolinhos! Não só não perdia minhas bolinhas lindas, que pareciam olhos azuis e verdes, alguns com pequenas nesgas de nuvens brancas, como ganhei verdadeiras joias dentre as tantas bolinhas deles que consegui! A partir dali, ganhei o respeito dos moleques e era tratada quase como uma igual. Sim, quase, porque no Clube do Bolinha, menina não entrava. Eu era uma espécie de exceção, mas quando surgia “assunto de homem”, eu era colocada para escanteio.
Mesmo assim, tive bons momentos brincando com os meninos. Pouco tempo depois, mudou-se para lá uma menina quase da mesma idade que eu e nos tornamos amigas. Íamos uma para a casa da outra, brincávamos muito de bonecas de papel (vinham em cartelas para se recortar e as roupinhas também, com alcinhas de papel para as “vestirmos”). Tinham vários nomes comuns para a época, mas não achava nenhuma com meu nome. Amava brincar de trocar as “roupas” e acessórios, fazíamos desfiles, inventávamos situações inusitadas. 
Fomos crescendo e os interesses foram mudando. Os esportes passaram a ser mais atraentes. Gostava de correr, pular, jogar vôlei, andar de bicicleta. Logo mudei de domicílio e fui morar em frente à Praça Afonso Pena, na Tijuca, onde tínhamos uma turma que saía de bicicleta e dava voltas nos quarteirões. Naquela época, não havia tanto perigo, nem tanto trânsito. Depois, íamos à sorveteria Chamonix, contar as moedas para uma casquinha de creme. 
Numa dessas saídas de bicicleta, eu devia ter uns 10 anos, já era alta para a idade e metida a adolescente (minha bicicleta era aro 26), resolvi correr na praça, na parte de baixo, em que o piso era mais plano, sem buracos ou intervalos entre uma placa de concreto e outra, e vinha em velocidade, quando uma criança, aprendendo a andar, surge na minha frente. Joguei o guidão para a direita, bati com o pneu dianteiro de frente em um dos bancos de cimento, a bicicleta virou por sobre mim e dei com a boca no gradil do jardim, vindo a quebrar o dente incisivo superior esquerdo, que cortou minha boca. Levantei assustada e com dor, cuspi o pedaço de dente, peguei a bicicleta e fui pra casa em pânico. A criança não foi atingida. Em casa, levei uma bronca e uns tapas da minha mãe, que bradou irada que havia colocado uma filha perfeita no mundo, mas que ela (eu) era teimosa, insubordinada e irrequieta! Levei anos com o dente quebrado logo na frente, fazendo meu sorriso mais encabulado, até ser reconstruído com resina, eu já mocinha. 
Hoje não tenho mais a minha coleção de bolinhas de gude, nem a de botões (só uma de chaveiros), muito menos as bonecas de papel, que cheguei a procurar para presentear a minha neta. Mas a danadinha só quer saber de tablet! Lá tem joguinhos em que ela veste as bonecas on-line, com uma gama de acessórios muito maior e mais coloridos que os da minha infância. Também já não consigo mais sentar no chão por muito tempo, para ensinar meu neto a “tecar” umas bolinhas de gude. E ele só quer “teclar” nos aplicativos de jogos.
Cada infância com suas memórias. Eu fui muito arteira na infância. Pulei muro, subi em árvore, comi fruta do pé, brinquei de tudo que foi brincadeira, tanto de meninas, quanto de meninos, e até fumei escondido no banheiro da escola! 
Meus netos não terão as mesmas recordações que as minhas, mas sei que a infância deles tem uma coisa maravilhosa: eu, a vovó arteira e cheia de energia para brincar com eles e lhes encher de livros e muito amor!