A JANELA PARA O LADO DE DENTRO

Na casa onde morava, tinha uma janela no meu quarto que dava vista aos fundos. Nos fundos, tínhamos uma segunda cozinha (que nem de longe se aproximava das atuais áreas gourmet), utilizada para “fazer frituras”. Eu lembro-me da pia sempre engordurada, aquele sebo persistente que se acostumou à estrutura e negou-se a ser desapropriado de lá. Havia, ao lado da pia, um fogão azul "vintage", de quatro bocas, e um vitrô, quase ao teto, acima dele. Armários velhos, de madeiras cujas lascas triscavam nossos dedos; uma mesa de jantar, de mármore e redonda, amparada por uma base de ferro, senão pintada de laranja, colorida dessa cor pela ferrugem, quebrada na linha diametral porque eu, então criança corpulenta, sentei na ponta dela, rachando-a - para imensa felicidade de minha mãe. Praticamente contíguo ao fogão, uma porta de ferro e vidro, dessas comuns à classe média do interior do Estado de São Paulo na década de 70 e 80, dava acesso ao corredor externo que chegava até a cozinha principal, no meio do caminho, e desembocava na sala de tevê – primeiro cômodo da casa, vigiada por nossa estimada e espaçosa varanda.

De volta à janela de meu quarto - ou melhor, do quarto que viria a ser meu, após o divórcio dos genitores, porquanto era ocupado nessa época por meu pai e meu irmão, em duas camas de solteiro -, debaixo dela, um armário escuro, com tons preto e marrom, alojava quinquilharias que iam desde máquina de escrever até um baleiro dourado, que obviamente não era ouro, e se obumbrava pelo tempo, pelas constantes discussões de família, pela solidão de meu pai, o qual por ali bebia, sozinho, todas as noites, sem incomodar ninguém, exceto minha mãe, já que a simples presença dele na garagem e seu momento de reflexão com a cerveja a incomodava demasiadamente, e cujos motivos apenas especulo.

Seguindo pelo flanco da garagem, amontoavam-se bicicletas, skate, bolas e alguns brinquedos, até um portãozinho, também de serralheria simples, que conduzia a um comprido corredor, com muros baixos, onde, próximo ao ponto central, se situava uma grande antena de comunicação, e se encerrava numa parede ainda mais inferior que a parede lateral, na frente da qual se inaugurava o jardim circundante da varanda da frente. Nós morávamos na esquina do centro da cidade e o extenso corredor do flanco se posicionava na Rua Fortaleza. Tive muitos pesadelos com esse corredor, seja porque, como dito, o seu muro devia ter um metro e oitenta, no máximo, e dois quartos, o banheiro da suíte (da minha mãe) e a sala-de-estar, embora gradeados, localizavam-se atrás dele, seja porque nunca confiei naquele portãozinho de metal leve, fechado apenas por cadeado vagabundo – muitas vezes esquecido de ser trancafiado. Nesses pesadelos, nossa casa era invadida, na calada da noite, por bandidos cujo acesso ocorria por esse corredor e portão franzinos, mas eu sempre acordava logo após o ingresso dos criminosos.

A terceira parede da garagem, que eu vigiava tranquilamente do “meu” quarto possuía um suporte de rede na qual eu adorava balançar, com toda a empolgação de criança sem asas. Outra porta de ferro débil, vazada e torta, rompia a parede defronte a minha vista, e sua abertura e trava eram sempre penosos. Detrás dela, havia um singelo quintal onde se estendiam roupas e muito eventualmente armávamos uma piscina de plástico na época da minha infância. Tenho uma foto nessa piscina, com uns seis anos de idade, em que meu pai brincava comigo dentro d' água e ele me ajudava a surfar com uma prancha de isopor encardida. Ele sorria na foto e eu me divertia. Guardo uma vaga memória desse dia, quando a ideia acerca da minha figura paterna ainda não havia sido corrompida pela alienação parental elaborada por minha mãe. Nesse quintal, meu pai esmerava-se em esconder engradados de cerveja com a própria lona da piscina improvisada na qual nos divertíamos em 1992.

Eu sentia medo desse pátio de lajotas de quatro metros quadrados. Os muros eram baixos e desprovidos de ofendículos. Parecia-me um acesso facilitado a intrusos, mormente porque não raras vezes aquele portão deformado sequer era fechado e conferia passagem à garagem coberta, que, outrossim, era toda forrada por lajotas vermelhas – chatíssimas de limpar – em cujo espaço cabiam até dois veículos de passeio, se trouxéssemos a mesa de mármore fendida mais próxima ao fogão.

Um diminuto banheiro, de simples acabamento, com sanitário e pia amarelos (ou bege, não me lembro ao certo do tom), situava-se anexo à área de serviço, onde estava uma antiga e grande máquina-de-lavar quadrada (que, salvo engano, permanece na posse de minha irmã até hoje) e um tanque duplo, defronte o qual um pilar sustentava a laje. Movendo meus olhos um pouco mais para a esquerda, eu via uma despensa de dois metros quadrados, mas cujo potencial para acumular objetos inservíveis era absurdamente alto. Nesse depósito de relíquias, de mágoas, de teias de aranhas, de brinquedos, de banheira de bebê azul, de gritos esquizofrênicos, de skate (do meu irmão), de varas de pescar (do meu avô), de caixa de livros, de patins (da minha irmã), no qual a exploração era intrincada, já que as pernas ficavam presas dentre as bugigangas, a luz, quando funcionava, era esquálida, como se realmente desejasse manter tudo aquilo no esquecimento.

Uma janela estabelecia-se para conceder ventilação a esse depósito familiar, com panorama para dentro da garagem, assim como meu quarto, mas ela nunca se abria; seus vitrôs embaçavam-se de gordura, poeira, descaso. Eu podia traçar uma trajetória semirretilínea entre a ventana da despensa e meu quarto, no entanto, eu preferia enxergar o todo: a churrasqueira portátil na qual meu pai fazia churrasco, religiosamente aos domingos, a contragosto, em reverência ao desígnio de minha mãe, esforçando-se para acender o fogo, abanando-o com uma tampa de panela ou um pedaço grande de papelão (ato esse execrado por mim até os dias atuais, seja pela imperícia, seja pela sujeira e fumaça desnecessárias que invadiam meu quarto pela janela); o sol desse santo dia que eu buscava evitar - por me parecer deletério, triste, entediante, desprezível em uma cidade tão pequena cujos habitantes eram abduzidos aos domingos -; o recolhimento da minha rede na qual, no sábado, eu balançava vibrante; o cheiro inconfundível do arroz da minha mãe; o clima desconfortável entre meus irmãos, e as poucas palavras ríspidas entre nossos pais.

Éramos péssimos como família, e ainda somos, mesmo entre os que sobreviveram. Aprendemos pouco ou quase nada com a morte de nossos pais (em datas distintas, por eventos diversos). Perseveramos em ser vaidosos, egocêntricos, individualistas e nossas parcas afinidades restringem-se ao Direito, cujo debate leva a mais discórdia e afastamento - então, eu evito falar a respeito.

Na adolescência, quando finalmente tive o quarto só para mim - porque depois do divórcio dos meus pais, o doutor (cuja pecha de alcóolatra minha mãe plantou em meu peito, sem me deixar opção para julgá-lo, entendê-lo, aceitá-lo ou perdoá-lo) deixou a residência comum e meu irmão mudou-se para a Capital Paulista -, minha mãe resolveu mudar a janela de parede, transpondo-a para a borda do longo corredor (espinha dorsal da casa). Eu gostava de recostar-me sobre o parapeito de mármore gélido da janela cuja vista dava para a garagem e também para a escuridão recôndita da família e do estacionamento lajeado, contudo a paisagem da nova janela era bem mais bonita: o sol não parecia amargo, senão aconchegante; a copa da árvore do terceiro imóvel vizinho trazia-me paz; eu podia contar estrelas, sucumbir à lua, sentir a brisa da noite, que refrescava meu rosto; e, nos dias de chuva (meus prediletos), eu observava o céu tingido de ametista entre relâmpagos que não me assustavam.

A janela para o lado de dentro havia sido fechada e outra foi aberta para o lado externo. Passamos alguns anos de maior cumplicidade e harmonia, só eu e minha mãe – minha fraterna havia se mudado, até antes de meu irmão. Agora nós trancávamos toda a casa perto das dezenove horas e conferíamos as portas desguarnecidas. Eu pude conhecê-la melhor. Não tive essa chance com meu pai, em cujo velório e enterro eu e meus irmãos não estávamos presentes - por motivo de força maior -, o que nos permite alegar "mea culpa".

Não visito o interior do imóvel há dezoito anos. Nada sei da janela do meu quarto de infância e adolescência; só sei que, depois de quase duas décadas alugada, a casa hoje está à venda no centro de minha cidade natal. E, tal qual fez minha mãe, como competente professora que era, eu realoquei a janela de minha memória, ao selar a ventana dos primórdios, para projetar outra vista, outro tempo, tempo de uma nova vida, com a fenestra aberta ao exterior, para receber as bênçãos do futuro, compreender meu passado - sem renegá-lo -, e expurgar o que não serve mais.

Elmer Giuliano
Enviado por Elmer Giuliano em 05/05/2024
Reeditado em 08/05/2024
Código do texto: T8056976
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