Viver é ainda possível?
"É possível viver a essência da vida?" É MESMO, cara! Basta tentar, basta querer, basta agir, basta mudar, basta amar mais, basta crer, basta ser!?! Me dá um folheto dessa nova vida ou me passa tutoriais ou aquelas dietas revolucionárias, meu amigo! É sério, claro que é. Por que não seria!
Bebo água às três da manhã. Não durmo direito. Até quando eu durmo toda a minha alma ainda permanece acordada, sempre velando o nascer de um irrisório gesto que possa surgir no universo e dentro de mim mesmo. Nunca durmo e nunca estou acordado inteiramente. "Como é possível viver"?!!
A TV espera para ser ligada, assim como a geladeira para ser aberta, assim como portas, gavetas, pernas, bocas, livros, fama, sucesso, glórias, céus, infernos, computadores, sempre alguém busca algum tipo de porta como se ela fosse levar a um novo lugar fantástico (quantas Alices e mais Alices descerão pela toca do Coelho Branco achando que encontrarão um reino diferente e maravilhoso, quando tal descida é o ato irredutível de se estar morrendo e a toca profunda do coelho é o buraco cavado pelo coveiro!?), levar a um novo mundo, a uma nova rota de fuga ou de lago onde possamos tocar e mergulhar na felicidade. As portas me ensinaram que sempre a essência das coisas deve permanecer fechadas, e que não é a quantidade de portas abertas ou conquistadas que determina o valor de uma pessoa, mas é a sua persistência em continuar caminhando, quando tudo nos seduz para desistirmos.
O coração humano está além das intelecções de nossa lógica e razão?! A razão interroga, e o sentimento vibra ondulações sistêmicas que atingem o mais íntimo de nossas almas?! Porém piscamos os olhos para disfarçar os tremores sísmicos que a cada instante transformam as geografias e as equações (ou as inadequações) subjetivas deste nosso sentir tão indeciso e ortodoxo. Uma voz, um ruído, um som, um grito, uma súplica, algo ressoa sempre simbologias perante os nossos corpos surdos e esclerosados.
Eu me olho, todavia não encontro a mim, eu me busco por todas as salas, abro todas as portas do meu ser e não encontro a mim nem o que sou. Não que eu esteja perdido, porque nada ainda fora plenamente encontrado e desvendado. Se eu ao menos sentisse um vazio em meu ser já seria alguma coisa, já teria algo para sentir, algo para tentar me compelir a alguma reação ou modificação, mas até o vazio se isentou para bem longe de meu corpo. Não sei exatamente o que se passa dentro de mim, pois ao mesmo tempo sinto necessidade de ter pessoas que me amem, que me escutem, que saiam comigo para diversões, que me façam esquecer do que não sei, mas automaticamente essa mesma necessidade de tais pessoas se torna ridícula e irritante em meu íntimo.
Sinto-me agora como um coveiro, vivendo entre lápides, caixões, túmulos, flores, memórias, espaços para novos buracos, porque tudo está morto aqui, assim como sepultado esteja eu (ou pode ser uma sensação claustrofóbica de me sentir encaixotado no fundo de uma tristeza que não tem chave.) Não sei precisamente quando morri e nunca sabemos quando morremos, já que, quando o ato da morte plena e da plena morte ocorre no ser humano, já não somos, já deixamos de ser.
Acho que foi quando os meus olhos abertos acordaram e enxergaram o cerne das coisas que as estrelas ou algum girassol do viver murchou, a luz desvaneceu, e o mundo e a vida com seus palcos, picadeiros e tabernáculos tornaram-se em meros e supérfluos cartões postais, comércios ou em outdoors, como aquele inocente bode precisa ainda sorrir enquanto este é levado para o altar a fim de ser sacrificado em prol de alguma divindade ou ídolo legalizado ou sacralizado, ou foi no momento em que as coisas perderam suas identidades pelos meus próprios desejos incógnitos ou porque as próprias coisas nunca tiveram identidade ou substância alguma além do que nelas projetamos.
“O que eu quero mesmo?” Eu quero me libertar de querer e não-querer, concomitantemente. Entendeu, prezado interlocuto?! Sei que não me entendeste, mas vou fingir que as coisas estão bem e que vão melhorar amanhã.
Eu magoei algumas pessoas que não mereciam, assim como eu não mereci ser traído por menos de trinta moedas de prata por tantos que eu confiei e julguei amar. Somos meio que porcos-espinhos tentando abraçar ao outro, porém todos sempre acabam saindo feridos e sangrando.
Parece que nada em nós consegue permanecer em silêncio, pois são tantas espécies de vozes e alaridos que fluem e fluem e gritam e gritam por todo o nosso corpo, mas nossos olhos querem só ver coisas em telinhas sem coração e alma que brilham como ouro de tolo entre nossas mãos cheias desta sede ignara; nossos olhos querem vídeos novos, querem imagens novas; nossos dedos estão com aquela fome estulta, banal e fútil de querer teclar e teclar e passar as antigas imagens, enquanto o dia lá fora é real e está ensolarado, sereno e tão bonito e este nos sussurra aos ouvidos "vem viver um pouquinho agora"; contudo, abaixamos um pouco a cabeça para voltar aos hábitos antigos que entorpecem o nosso olhar e atrofiam o nosso existir.
Estamos abandonados a conviver conosco mesmo e com os outros. Estamos destinados a trilhar os mesmos labirintos e dúvidas de nossos pais e avós (mas hoje falamos mais do que deveríamos falar), ou estamos fadados a novas dialéticas culturais quaisquer, pintados com novas cores e brasões?!
E continua a doer na raiz profunda do nosso pensamento, do nosso coração e de todos os ossos de nossa alma corruptível esta frase: “é possível ainda viver a essência da vida”?