Samba no asfalto em São Paulo
O cenário: alguma avenida de São Paulo. Um puta trânsito dos infernos. Sol. Barulho. Motoristas irritados buzinam, nada arrefece o ódio. Ônibus, uma fila interminável deles, há também caminhões, os carros e as motocicletas, todos presos em um engarrafamento distópico.
A horda de veículos briga por cada espaço de asfalto que ferve, derrete pneus e enlouquece o juízo; para seguir em frente cada um se adianta numa disputa vil, egoísta, odiosa - passa apenas um veículo por vez, em uma das seis faixas disponíveis, os motoristas explodem impacientes.
A causa deste mórbido e terrível congestionamento: dois idiotas estão sambando, fazem uma coreografia alegre, parecem alucinados, têm os olhos vidrados, dançam a não mais parar, sugestionados, hipnotizados, entrelaçam os pés e calcanhares, giram habilmente em torno de seus próprios eixos. Erguem os braços, articulam os joelhos e se movem em cinco faixas da avenida, que àquela hora deveria estar fluindo. Os dois tangarás entoam gritos entusiasmados, cantam um samba enredo que evoca à liberdade política (que rareava naqueles tempos).
As buzinadas são ensurdecedoras, e os xingamentos? Se os listasse aqui, deixaria enrubescido o leitor mais progressista – mas, para que tenha uma ideia “filho da puta”, é o mesmo que “meu benzinho” perto do que ouvem.
Heroicamente não dão bolas para os xingamentos, imprecações e maldições que lhes são dirigidas, no entanto, um dos passistas decide responder a um caminhoneiro de camiseta amarela que empunha um revólver – com uma impressionante clareza de entonação, pronunciando todas as sílabas e letras, dançando e sem perder o compasso do samba enredo (que naquele instante era cantado apenas pelo outro camarada-sambista), berra: EU SAMBO POR UM PAÍS MELHOR SEU FASCISTA IMUNDO! E VOCÊ, FAZ O QUE PELA DEMOCRACIA?
A cena se arrasta por algumas horas até que assassinam os sambistas democratas – cravejados de balas de diversos calibres, são atropelados, esmagados, transmutam-se rapidamente em pasta humana, seus corpos aderem ao asfalto fervente, os motoristas podem enfim, seguir seus caminhos, ninguém se importa ou chora...
É um sinal do que está por vir!