CAFÉ PRETO COM CINCO GOTAS DE VIDA
Numa cafeteria, em Nilópolis, uma senhora atende ao celular:
“- Minha neta, como você está? Como estão as coisas na Polônia? Venha ao Brasil ver a sua avó. Eu já estou com 88 anos e bem doente, não tenho mais muito tempo. Venha matar as saudades antes que a vovó parta para o lado de lá, venha para que a vovó possa te ver essa última vez.”
Eu tinha ido buscar o resultado de um exame no meio de uma tarde fria. Então, parei para tomar um café. Minha mãe me aguardava, num consultório médico, em outro canto da cidade.
Eu não gosto de ouvir conversa dos outros, mas ouvi essa. O ambiente era pequeno, todo mundo meio que ouve todo mundo. Fiquei tocado. Foi uma conversa honesta, direta, mas cheia de carinho, coisa de quem já conhece os atalhos da vida, coisa de quem tem noção da realidade, da passagem do tempo, das verdades das coisas.
Essa senhora falava com a neta, arregalava os olhos, me olhava e sorria: ela estava me colocando na conversa. Assim, do nada, ela falava para a neta e para mim. Ela parecia querer que eu soubesse da vida dela. Alguns idosos são assim, falam com qualquer estranho. Eu fiquei um pouco sem jeito, fixei os olhos no preto do meu café. Dei um gole, queimei a língua, estava quente demais.
A senhora, finalmente, desligou o telefone. Eu olhava para a vidraça, não para ela. Mas, ela me disse:
“- Era a minha neta! Ela mora na Polônia, mas está indo para Budapeste. Ela estuda muito, não tem tempo de vir me ver. Eu queria que a minha neta viesse aqui até o Natal, mas ela não sabe se vem, ela estuda muito.”
Eu não disse nada, só balancei a cabeça positivamente. Virei mais um gole de café, agora mais frio.
Ela continuou:
“- As pessoas não gostam de ouvir a verdade! Ela não gostou quando eu disse que ia morrer, mas eu vou morrer. Já estou bem velha, vivi muito, estou doente. Tudo nessa sacola aqui é exame! (Abriu a sacola para que eu visse). Eu só queria ver os meus netos, todos, no Natal. Deus é quem sabe o dia de me levar, mas não vai demorar também. Ele não esquece de ninguém. Ninguém fica para semente...”
Ela terminou essa frase com a voz baixa, um pouco taciturna, amargurada. Depois, prosseguiu:
“- Vou te contar! É muito ruim gostar de quem mora longe. As pessoas só querem se falar pela Internet. No meu tempo não tinha isso. Ou tu ia na casa da pessoa ou tu não ia! Ou tu mandava uma carta ou não mandava! A carta demorava um tempão pra chegar! Eu queria ver a minha neta, mas ela acha que tá bom falar pelo celular. Ela acha isso, mas eu não acho. A internet facilita, mas afasta. As pessoas acham que não precisam mais se ver, só querem trabalhar, estudar... não é assim, não. Depois, a gente morre e só fica o retrato... aí não adianta nada!”
Eu fiquei impressionado com tanta clareza, tanta lucidez.
Por fim, ela me disse:
“- Ninguém gosta de ouvir a verdade, mas eu falei a verdade pra ela. As pessoas pensam que enganam velho, mas não enganam, não. Velho fica quieto pra não arrumar confusão. Chega uma idade em que a gente nunca tem razão. Eu não quero discutir, eu só quero me despedir. Eu já vivi muito, moço. Eu já vi tudo que eu tinha que ver. Família é importante, é mais importante que morar na Polônia, mas agora não tem como a minha neta saber. A Polônia vai ficar lá, ela tem a vida inteira pra ver...”
Nessa hora, chegou uma moça mais jovem e levou a senhora pela mão. Ela não se despediu de mim. Paguei meu café e saí.
Corri, encontrei minha mãe entrando na sala do médico. Entramos juntos. O médico disse:
“- Dona Maria, a senhora está cheia de pedras na vesícula. Sua vesícula está até atrofiada. Vai precisar retirar, tá?”
“- Mas, não tem um remédio para desfazer as pedras? Eu não queria operar!”
“- Não tem remédio, o seu caso é cirúrgico.”
“- Ah, doutor!!!”
Minha mãe ficou triste. Por pouco, não chorou.
Saímos do consultório. No caminho até o carro, minha mãe dizia:
“- Eu não quero operar! Eu não quero operar! Eu não quero operar!”
Apertamos o passo por causa da chuva que começava a cair. Uma chuva fina, fria, acompanhada de um vento gélido por demais.
Eu não sabia onde o frio era maior: dentro ou fora da minha alma.
Foi muita realidade para uma tarde só.
Girei a chave do carro, senti o ronco do motor, engatei a ré.
Ouvi o pneu de borracha deslizar sobre a brita do estacionamento.
Minha mãe olhava os pingos de chuva no para-brisas. Estava calada. Pensava na cirurgia.
Nesta tarde, a neta da senhora andava, despreocupada, pelas ruas de Cracóvia...
A avó saia da cafeteria, em Nilópolis, pensando no último Natal com toda a família...
O médico da minha mãe, Dr. Sessin Gajar, correu para atender uma emergência...
A minha mãe pensava (em vão) num modo de não ser operada...
E eu... bem, eu só dirigia.
Robson Cassimiro