" O Augusto Catador de Papéis" = Reminiscências Santistas=
Augusto Carrinheiro gostava de filosofar e de contar seus casos. Parava seu carrinho de mão, imenso, lotado de coisas catadas pelas ruas da cidade, em frente ao meu bar-e-restaurante, dava um sorrisão a título de bom dia, perguntava pelo prato do dia, e começava logo a contar seus casos, rindo por antecipação, o que às vezes tornava difícil entendê-lo.
Gostava de contar como havia traçado as próprias irmãs, quantos filhos tinha com elas, o quanto o pai brigava com os filhos homens querendo saber quem comia as meninas, como se fossem os fatos mais naturais do mundo.
- Um dia o velho reuniu a filharada toda, nós era em onze, e perguntou, bravão quem tinha comido os tampos das meninas. Nós tudo calado ali, olhando pra ele e meu irmão caçula deu uma risadinha. O velho quase matou ele de paulada e expulsou de casa. Mas quem comia elas era eu e elas num contava nada. Eu já era forte desse jeito e elas tinha maior medão de mim.
Augusto não era apenas forte. Deve ter sido uma das pessoas mais fortes que já vi de perto em minha vida. Às vezes, em minha presença, desafiava carrinheiros mais altos e aparentemente mais fortes a movimentarem alguns metros o carrinho dele. Nunca vi um deles realizar o feito.
O único dono de bar e restaurante que admitia que os carrinheiros usassem o banheiro era eu. Tinha pena dos coitados, deixava que usassem, mas sempre lembrando a uma das empregadas que fiscalizasse e limpasse o sanitário logo que um deles acabasse de usá-lo.
Um dia um deles, o maior e mais musculoso, saiu do banheiro e já estava na calçada quando minha empregada veio gritando lá do fundo:
- Olha, pega ele! Ele sujou no chão e espalhou coco pelas paredes!
Claro que eu não poderia simplesmente pegar um sujeito enorme como aquele, por mais raiva que sentisse, mas para minha sorte Augusto vinha chegando com seu imenso carrinho e logo percebeu o que havia acontecido. Alguns segundos depois o corpo do safado, ingrato e estúpido carrinheiro rodava preso por um dos braços enquanto Augusto o moia de pancadas. Que surra impressionante! Achei que o cara cairia desmaiado ou morto e pedi a Augusto que parasse de bater no cara. Já chegava.
- Chega não, seu Fernando. O senhor é o único do pedaço que tem a caridade de deixar a gente usar o banheiro e o fio duma grande puta faz uma dessa. Quando acabar de apanhar ele vai deixar o banheiro brilhando.
Cheio de hematomas, todo estropiado, sob a vigilância de Augusto, o cagão deixou o banheiro tão limpo como eu ainda não havia visto.
Todo santo dia ele tinha que tirar sarro pra cima de mim:
- Sô Fernando, minha vida é melhor que a sua.
- Já sei, Augusto. Tô cansado de saber...
- Eu num tenho que pagar cheque, promissóra, fornecedor, empregados. Vivo de cabeça fresca todo dia. Num pago água, luz, telefone, imposto...
- Vida boa é a sua, Augusto.
- Tomo banho na fonte ou nos chuvero da praia e tô sempre limpão. Num tô?
- Está. Você é uma das pessoas mais limpas que já vi em sua profissão.
- Eu num tenho profissão.
- Como não? Você é carrinheiro.
- Isso não é profissão. É róbis.
Eu tinha que rir fingindo que não era dele e sim de sua espirituosidade.
- Quer dizer que você exerce como “róbis” a catação de coisas...
- Claro...Com arguma coisa a gente tem que ocupar o espírito.
- Então você é um colecionador de materiais recicláveis.
- Digamos que sim, só que acabo vendendo tudo que cato. Não consigo guardar nada. É meu jeito de ser. Mas eu nunca te pedi fiado, não é? Venho aqui, encomendo minha maumita, pago na ficha e vou comê sossegado no meu canto.
- Bom pagador você é. Não posso negar.
- E levo uma vida melhor que a sua. Não tenho que cobrir che...
- Já sei, Augusto. Você não tem que cobrir cheque, promissória, pagar empregados, impostos, telefone, etc. Muda o disco, meu amigo.
- E ainda como umas donas toda noite.
- Suas irmãs ainda?
- Não. Agora elas tá tudo casada.Virou tudo mulé de respeito, seu Fernando. Agora eu só como elas quando elas vem saber notiça minha. Coisa esporádia.
- Dá pra fazer um dinheiro bom com essas coisas que você ca...coleciona e vende?
- Olha, seu Fernando, dá pra fazer, digamos, assim na faixa etária de uns setecentos, oitocentos contos por mês.
“Faixa etária de uns setecentos contos...”. Minha nossa!! Essa foi difícil de segurar. Pra não mostrar que ria dele, fingi que tossia.
- Ficou com inveja, seu Fernando? Setecentão limpinho que eu ponho na poupança todo mês.
- Realmente invejável. Deve estar rico, Augusto.
- Rico não. Digamos que remediado, seu Fernando. Remediado. No geral, seu Fernando, eu vivo melhor que o senhor. Eu não tenho que...
- Se você repetir a ladainha, Augusto, eu vou aumentar o preço da sua marmita.
Ele ria alto, feliz da vida, pegava a quentinha e saía puxando o pesado carrinho com apenas uma das mãos.
- Eu num bebo nem fumo, seu Fernando, mas pra trepar não tem igual. O senhor pode colocar três duza de mulé na calçada, tudo pelada, que eu dou duas em cada uma, no "mini".
- Aposto que depois ainda se masturba...
- Só se num ficar satisfei de verdade, seu Fernando.
Em alguns minutos de conversa eu ouvia mais vezes meu nome dito por ele do que minha ex-mulher devia ter falado nos anos todos de casados...
Um dia Augusto entrou no bar e estranhei. Ele costumava ficar na entrada e ali esperar pela marmita. Entrou, sentou-se numa das banquetas e pediu uma dose grande de conhaque.
Depois de virar todo o conteúdo do copo de uma só vez, colocou em cima do balcão uma sacola plástica que me pareceu pesada.
- Seu Fernando, eu tô indo matar um cara. Se eu não voltar, o senhor guarda essa sacola pra mim até minha filha Lurdes vim procurar ela. Se ela num vier em um mês o que tem na sacola é seu.
- E o que é que tem na sacola, Augusto?
- Dinheiro. Tudo que eu poupei tá aqui.
- E porquê você vai matar o cara?
- Ele espalhou pros meus colegas que passou a mão na minha bunda e não aconteceu nada com ele. Meus colegas não acreditaram, mas fizero gozação com a minha cara e tive que bater neles. Agora eu vou matar o cara. Dá mais um copo de conhaque. Mas enche o copo.
- Está bebendo pra tomar coragem, Augusto?
- Não preciso de porra nenhuma pra tomar coragem. Tô bebendo pra matar ele depressa, com um “mini” de sofrimento.
Depois da segunda dose ele se foi. Nem pensei em dissuadi-lo do assassinato. Sabia que seria besteira e me arriscaria a irritá-lo, o que não era nada bom pra saúde de ninguém.
Augusto não voltou nunca mais. Quando passava um carrinheiro e eu o chamava, ele simplesmente acelerava o passo e sumia logo da rua onde eu tinha meu bar e restaurante.
Três meses depois comprei um carro usado com o dinheiro que a filha de Augusto não fora buscar. Talvez não acreditasse que o pai havia acumulado alguma coisa na poupança. Ele havia dito que em trinta dias o dinheiro seria meu. Esperei noventa dias pra tomar posse.
Anos depois, quando já mal me lembrava do bar que possuíra, um carrinheiro passou por mim e me reconheceu.
- O senhor não era dono de um bar no Gonzaga?
- Era. Porque?
- Era o bar onde o Augusto ia cagar, não era?
- Um fato histórico: Augusto cagava no meu bar. O que houve com ele?
- Com o Augusto? Morreu de morte matada.
- O homem que disse que passou a mão na bunda dele foi quem o matou?
- Não. Aquele ele matou. Pegou o cara pelo gasganete e quando soltou o cara tava mais morto que não sei o que...
- Então quem o matou?
- Um frangote pequeno e magrinho. O Augusto passou a mão na bunda do rapaz e ele se virou tão depressa com a navalha que quase cortou fora a cabeça do Augusto.
- Perdeu a cabeça por causa de um rabo...
- Perdeu a vida. Dizem que ele deixou uma fortuna, mas até hoje ninguém viu a cor do dinheiro.
- Era azul-escuro-metálico-único dono.
- Como?
- Nada. Foi só uma besteira que me passou pela cabeça. Até outro dia.
Até hoje, quando me lembro disso, sinto raiva por não ter perguntado a ele porque os carrinheiros passaram a evitar-me e ao meu bar. Era o único que permitia -sob estreita observação- a evacuação "carrinheirística"...