GUERRA CIVIL

Na fila da Americanas, observo. Dezenas, deliciosas e irresistíveis guloseimas espalhadas nas gôndolas. Em sacos plásticos que desfilam mais cores que o arco-íris, balas e salgadinhos, bombons e biscoitos recheados serpenteiam a clientela. Para não sucumbir às tentações, presto atenção nos dois caras que, à minha frente, também aguardam atendimento:

— Cê já foi ver o filme do Wagner Moura?

— Tá doido, velho? Vou lá perder meu tempo e dinheiro com filme daquele mamador da lei Rouanet?

— Produção americana, cara. Não rola dinheiro público brasileiro, não.

— E daí? Aquele atorzinho é esquerdopata, eleitor do ladrão-de-nove-dedos... Eu que não dou meu dinheiro pra ver a bosta desse filme.

— Eu também não.

Lá do balcão, quase escondida pelos pacotes de Fini, a atendente chama o ‘próximo’.

Os caras se despedem com risadinhas bovinas. Um vai pagar a compra, o outro fica deslizando o dedo torto pelo feed do Instagram.

Tentando equilibrar as barrinhas de chocolate, o Oreo e a garrafa de água, dou uma olhadela por cima de seu ombro. Na tela do smartphone, a carantonha do (enfim inelegível) ex-presidente aparece cuspindo uma besteira qualquer. “Ainda bem que esse cara está com fones porque ninguém merece ouvir essas boçalidades, ainda mais em pé numa fila”, suspiro aliviado.

Volto a olhar as gôndolas.

Passo a mão em duas pastilhas de hortelã e no saquinho de caramelos.

***

Não há fila. Me aproximo da bilheteria, atento ao letreiro com os títulos e os horários.

A atendente parece cochilar diante do monitor. Responde ao meu boa-tarde com mau humor, manda escolher a poltrona. Enquanto o ticket é impresso, encaro suas olheiras: será que ficou assim depois de assistir ao filme?

O cartaz dos Caça-Fantasmas e minha pergunta quase me fazem arrepender da compra.

***

Na sala, número razoável de espectadores. Para ser sincero, me espantei: normalmente, a primeira sessão nunca enche assim. Ainda mais em tardes frias e xexelentas, como hoje.

Vou subindo a escada, atento para não tropeçar. Da outra vez, fomos eu, as pipocas e o refrigerante ao chão. Acho, nunca passei tanta vergonha. E, na telona, as peripécias do oitentão Harrison Ford soaram para mim mais como provocação que heroísmo.

Noto que algumas pessoas sequer esperam o filme rolar para devorar as pipocas e os biscoitos de queijo.

Sigo em busca da fila R. Sempre escolho poltrona ali. Não pense o leitor que o faço por razões esotéricas ou coisa semelhante. É que, atrás desta fila, só a parede. E, embora digam que parede tem ouvidos, não importo: pior são os que têm boca e desembestam a tagarelar durante a sessão. Como aconteceu quando vim assistir Jurassic World: Domínio e tive que suportar uns enjoados palestrando o tempo inteiro. Daquela vez, cheguei meio atrasado, então não deu pra comprar a poltrona na R.

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Guerra Civil entrega uma lição: a democracia pode ser frágil, muito frágil. E mostra o quão a sociedade encontra-se polarizada. Embora seja uma distopia, é assustador imaginar que poderíamos estar vivendo tudo aquilo caso o golpe de 2023 tivesse se concretizado. E, o que é aterrador, se continuarmos condescendentes com as práticas fascistas que todo dia pululam nos noticiários, nada impede que, em um futuro não tão distante, o país passe pelo caos narrado no filme.

Alex Garland, diretor do longa, deixa-nos este alerta. Um alerta de como radicalizações e fanatismos são perniciosos. Um alerta do mal embutido nos discursos extremistas que, não raro, enfiam deus, pátria e família em cada uma de suas frases ardilosas.

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Simbólica a cena em que a bandeira norte-americana tremula ao vento apenas com duas estrelas. Significativa a fala de um miliciano que julga algumas pessoas mais americanas que outras, conforme seu estado de origem. E, com isso, se arvora o direito de eliminar os menos americanos e os estrangeiros.

Também simbólica a cidadela por onde passam os protagonistas: apesar do clima bélico em que chafurda a nação, seus habitantes vivem em aparente calmaria. Como diz a mocinha da loja, não quiseram se envolver. Sua explicação me fez lembrar alguns conhecidos que arrotam por aí: “ditadura nunca existiu”, “ditadura só é ruim pra quem não anda na linha”, “não tenho problema com a polícia porque estou trabalhando” ou, ainda, “esse papo de golpe é invenção de comunista petralha”.

Negar o óbvio: idiotia ou tática de sobrevivência? Sempre me pergunto isso. Ainda não encontrei a resposta.

As cenas de Washington, sitiada e arrasada, me fizeram lembrar a tomada de Berlim pelos Aliados. O bombardeio à Casa Branca, os ataques ao La Moneda, que ceifaram Allende e a democracia no Chile.

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Refletindo, mal dou por conta que os créditos sobem e o público se dispersa.

Recolho as embalagens vazias, bebo o restinho da água.

Desço a escada pensando nos ruminantes lá da loja: perderam um filmaço. A moça da limpeza me encara. Acho, mais uma vez pensei em voz alta. Envergonhado, enfio o derradeiro caramelo na boca e, cabisbaixo, tomo o rumo da rua.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 28/04/2024
Código do texto: T8051837
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