No tempo do Guara Suco
Chegando na casa da do Dina, vi o netinho dela com a cara enfiada numa maleta preta, com um óculos no rosto, fone no ouvido e cercado de um silencio escondido.
Falei boa tarde, quase noite e ele tomado de vicio, compenetradamente numa esquife, mal levantou a mão. E ao iniciar a conversa com ela, deparei com o tempo fiquei, talvez como ele solto no ar, a viajar no pensamento e olhando fixamente pro chão entrei num transe de uma lembrança.
Cedo da manhã num sábado qualquer da janela lateral se podia ver à sombra do taperebazeiro Guilherme e Betinho com Euzemar e Arthur, ainda com o café com leite num copo de vidro seguro numa das mãos, com o pão ainda embebido dentro do copo, eles jogavam peteca no terreiro. Aquela turma cheia de energia parecia nunca parar. O dia mal amanhecia e eles estavam lá sempre em movimento...quando não estavam jogando o paga fichas amassadas de refrigerantes ou cerveja -que tocavam na parede e depois, quando a ficha caia, eles iam espalmar.. Estavam com a baladeira , cercando os pobres calangos, ou então inventando brincar com as marcas de cigarros. As vezes fazendo curicas pra empinar, já pensavam em furar as latas de leite ninho, que encontravam no lixo, pra fazerem um amassador ou rolo.
Em tempos , quando a vontade era substancial ao material coletado, se juntavam e começavam a recolher cabos de vassouras e as latas de óleo jaçanã, pra fazer um ônibus circular, que a noite, eles gostavam de passear exibindo com tocos de vela dentro, a iluminar.
A criatividade impacientemente ativa, os fazia sair do sonho pra praticidade inventiva... quando se pensava em sossegar lá vinha alguém com os barquinhos, as andorinhas e os aviões de papel, a valsa no ar como Santo Dumont, lá vinha também, alguém com um fura, fura, perna de pau, pula corda, carrinho de rolimã e o famoso time de botão com ficha, bolinha de rolha e pedaços de perna manca. Até que fizeram na árvore da casa do Pedrinho, algo parecido para eles, como uma cesta de basquete, isso já unidos a outra turma, a do Junior, Higino, Paulinho diabo, Moisés, Carequinha, Pedrinho e Cadu.
Passavam o dia inteiro, se deixassem perambulando pela rua, pois de tudo tinha... Era desde aquele futebol, um contra um, que só terminava, quem fizesse dez gols a subir nas árvores para comer as frutas em demasia, era traquinagem noite e dia. Como era saldável os ver no túnel dessas horas vagas.
Dizia dona Wilse, que mente vazia era oficina do diabo, mas ali ele não se criava. Aliás, ele bem que tentava, quando os meninos estavam assentados na batente da casa da dona Clarice pensando em fazer algo. De repente, do nada aparecia o Verequete - mendigo, que andava com um saco de serapilheira todo imundo pedindo esmolas, mas que se convencionou no terror da molecada, acabava com a rotina. Era o cão em figura de gente, pensavam os meninos e sem dúvida, como espalhava o seu Bené, aos travessos e mal criados. Diziam os adultos numa linguagem só. Verequete carregava no saco os meninos, que encontrasse na rua. Muito embora ele fosse tão bonzinho, um mendigo qualquer, mesmo assim a turma tinha medo.
Não obstante a isso, os meninos se pelavam de desespero, quando chegavam da aula ou brincando mesmo se deparavam com uma bandeirola vermelha dependurada na entrada de qualquer casa... já se sabia, era ele, o famoso "fura- dedo"...colaborador da SUCAN, responsável por verificar se no bairro alguém, devido a picada do mosquito poderia ter malária. Assim se sabia logo, se na casa havia criança, pois os gritos eram de um drama digno dos filmes de horror.
Mas quando aquele maremoto passava, gostava de ver a dança... os meninos devidamente banhados iluminando as ruas com os seus inventos. Era aquela gritaria, com correria...brincavam de roda, pata cega, macaca, brincavam de corrida, cemitério, brincavam e brincavam, quanto mais meninos e meninas, era uma sinfonia.
Uns e outros apareciam também com os seus bambolês, sobretudo com um invento... onde eles amaravam um arame num pau ou cortavam a garrafa de Q boa, enfiavam num cabo de vassoura e saiam pelas ruas equilibrando uma rodinha de carro de bebês... faziam malabarismo e tudo.
As vezes podia-se ver eles colocarem num vidro branco aqueles peixinhos da vala, que nada são, se não filhos de sapo e levavam pra suas casa como uma ideia de aquário; quanto antiquado, mas era do tempo. E os pais combatiam, inventando dores de dente a assombração. Coisas do tempo, como aquele pedaço de madeira cercado de pregos, cuja linha fazia o cerco ao redor e eles colocavam uma peteca batendo com uma palheta de pau de picolé, até o gol acontecer, era uma cópia do "totó", brinquedo caro de rico.
Quase no fim da tarde, alguém dispunha o seu álbum de figurinhas, ficavam horas discutindo, brincando o paga figurinhas ou trocando as repetidas. Até, que veio a era do ping pong, que eles brincavam naquelas mesas, que havia em muitas casas... aquela que no meio esticava.
Até a chegada do fim de ano, quando o papai Noel, pra alguns, dava uma renovada. E lá iam eles, feitos periquitos na mangueira batiam revoada, a disseminar na rua de ponta a ponta as novidades, além da criatividade.
Naquele tempo tudo era tão escasso, a fome e a miséria se insurgiam, a ditadura varria o sonho de democracia, porém a gente não entendia.
Havia uma magia no ar, que a gente tomava como refrigerante, que a gente via como as nuvens em suas várias formas de animais ou rostos no ar.
Apesar de em muita das casas dos nossos amiguinhos, não ter televisão, não ter uma água encanada, uma energia puxada, a casa ser alugada e bilhões de brasileiros lutarem para saírem do analfabetismo com o projeto Minerva ou o Mobral, apesar da nossa liberdade ser constantemente vilipendiada, ali a alegria... a amizade ... a solidariedade, a fantasia era de uma alma de verdade e que hoje, embora se tenha muitas facilidades, os tempos ficam na poluição da cidade.