Doro - a outra face
O nome era Dorival de Souza. Nasceu em 26 de maio de 1961, no Caraá. Homem alto, forte, cabelo preto comprido, bigode mexicano, rústico no estilo e tatuado em abundância. Costumava falar alto e, segundo Miguel Luis Miskulin, incorporou esse estilo pela fixação que tinha no Danny Trejo, famoso ator mexicano da época.
Geralmente vestia-se com camiseta de mangas longas e, em função disso, muita curiosidade causou. Aos domingos trajava-se com esmero, com sapatos lustrados cobrindo os pés largos, possivelmente tamanho 43 e, meio desajeitado com corrente no pescoço e dois anéis - um deles ornando uma unha que sempre mantinha pintada - seguia a vida do seu jeito. Essa arrumação toda geralmente era iniciada no sábado, como se fosse para um culto. Coisas do Doro, como era conhecido.
Miguel Luis conheceu o Doro no Beco do Laçaço. Na época ele era considerado o “dono do beco”. Foi ele quem abriu caminho para que o Miguel chegasse próximo à uma linda menina que lá morava por volta de 1981/82. Ali começou a amizade, que se fez por muitos e muitos anos e com muitas e muitas histórias. O Miguel começou a ser chamado por ele de “compadre”.
Em um certo final de semana o Miguel chegou no Beco e percebeu que a Kombi que levaria o Doro e a turma para um Baile no Arroio do Carvalho, abrilhantado pelo Amado Batista, estava estragada. De pronto prometeu levá-los. No horário combinado, na caminhonete F1000 embarcou o Doro, o Santo, o Zé Louro, o Lagarto, o Dezoito, o Satélite, o Bill Barbosa, o Cão, o Quero Quero e o Nico da tia Chica. Era uma turma e tanto! Esse foi o primeiro de muitos transportes feitos para eles e com eles.
Por volta de 1987 o Miguel convidou o Doro para trabalhar com ele na lavoura, acompanhado da Tata, sua irmã mais nova. Certo dia chegou o Doro para pescar próximo à lavoura em seu automóvel (Miguel não lembra se uma Kombi ou uma Brasília). Lá chegando deparou-se com o Miguel construindo uma caixa de concreto para puxada de água. A tarefa não era fácil e logo o Doro se aprontou, colocando-se à disposição. Com a mão do tamanho de uma raquete, pegando bloco por bloco somente com ela, em uma semana finalizou o trabalho. Dizem as boas línguas que a caixa ainda está inteira por lá.
A amizade foi reforçada em função da curiosidade do Miguel em assistir as brigas nos bailes de interior nos finais de semana. Era sempre um espetáculo à parte e, com o Doro, as cenas eram diferenciadas. Ele dançava com os erros.
Em 1996 o Doro mudou-se para Gravataí para administrar um bar. De imediato convidou o Miguel para fazer o mesmo, já tendo na cabeça um bom negócio que o amigo poderia fazer com uma padaria. De lá o Miguel carrega boas lembranças, a exemplo das várias divisões de um pedaço de pão por dez, para matar a fome de quem estivesse por perto. Em certa virada de Ano Novo passou por sua casa, que ficava ao lado, e o viu cozinhando uma grande panela de feijão para matar a fome de umas 15 crianças ao seu redor. A inclemência misturada com preocupação com quem gostava era atribuída visivelmente aos problemas que teve com o pai que, de forma um tanto truculenta, passou a vida disputando a pedreira dentro da Cohab. Possivelmente sequelas se arrastaram no filho.
O tempo e as mudanças de rumo de vida fizeram com que os dois diminuíssem o contato, mas quando o Doro decidiu retornar para Santo Antônio o Miguel passou 2 dias na sua casa em Gravataí auxiliando no desmonte das coisas. Daí em diante o bar, com snooker e tudo, passou a contemplar a presença do proprietário com regularidade, local onde foi assassinado em 23 de setembro de 2012.
Era homem bruto, rude, muito intransigente, quando bravo perdia toda a compostura mas, de uma hora para outra mostrava a outra face: um amigo leal, um excelente assador, um gozador de mão cheia. A influência do Miguel na vida do Doro era tanta que, em muitas situações totalmente descontroladas do nosso protagonista ele foi chamado para “travar o homem”. E confessa que travava.
E lá pelas alturas da Cohab falavam que havia um reduto do Partido Progressista, todo ele liderado pelo Doro. Segundo falam, em campanha, a primeira bandeira do PP era cravada lá em cima, por sua ordem. Em conversa com o Paulo Bier para busca de subsídios para este texto, tal afirmação deixou-o orgulhoso pois, embora soubesse, com provas, que o reduto existia, comentou que a sua amizade com o ele se estabeleceu no consultório médico, onde costumava levar a esposa e os filhos para serem tratados. Chamava o Paulo de “meu padrinho” e, quando a coisa estava preta costumava falar: “meu padrinho, cuida da minha mulher (ou de algum dos filhos) para ela ficar boazinha”. E essas visitas eram frequentes, tamanho o número da prole. Contou que em certo mês de outubro o seu consultório, na época na Borges de Medeiros, foi assaltado. Imediatamente buscou contato com o Doro que, no mesmo dia do chamado, esteve na sua residência. E no mesmo dia também apontou o assaltante, falando de pronto: “o computador está na casa do fulano de tal. Vá na polícia meu padrinho que eles resolvem logo, pois só com mandado para entrar na casa do gatuno”. Infelizmente a captura não logrou êxito porque a autorização saiu somente depois de um mês.
Outro “compadre”, o Toninho Selistre, o conheceu quando guri, no Beco do Reúno, no Bairro Madre Tereza. Conta que, desde aquela época já percebeu que o Doro não era pessoa que passava desapercebida. Era um cara espontâneo, bem pitoresco. Geralmente andava lado a lado com o Nego Jorge. Viraram amigos de histórias e de vida. O Madre Tereza, como bairro vizinho da Cidade Alta, propiciava uma boa reunião da gurizada. O tempo passou e, de amigo, o Doro passou a cliente do Toninho no seu escritório de advocacia. Na vida adulta passou a evidenciar no amigo a ausência de limites para viver a vida. Trabalhou de pedreiro a proprietário de bar e cabaré. Dizem que no último ele não era somente o patrão. Vivia em uma corda bamba entre a vida social e a marginalidade, sendo a última um templo para captar informações e dados para quaisquer situações. Suas informações, para muitos, valiam ouro.
Falava alto e geralmente topava qualquer coisa, da legalidade à ilegalidade, com uma naturalidade ímpar. Impunha medo nas pessoas mas, para o Toninho, era um cliente normal, embora com características bem marcantes. Todos os casos jurídicos eram de certa forma simples. Como tinha muitos filhos, muitos casos se referiam à pensão alimentícia, outros de uma briga aqui ou acolá; mas nunca foi condenado por crime hediondo. Não o considerava um marginal perigoso, embora fosse reconhecido por muitos como tal e, também, gostasse visivelmente de impor-se fisicamente. Mas de uma coisa Toninho não hesita em falar: “ele sempre gostou de colocar medo nas pessoas, mas, por outro lado, sempre evitou casos confusos, que gerassem confrontos físicos”. Trocando em miúdos, foi um “justiceiro” para os que ele considerava bons, algo estranho, que determinou a sua personalidade em vida.
Foi amado e odiado, bonito para muitos e horrendo para outros tantos, um homem caricato, controverso, difícil de explicar, de analisar e, por consequência, de escrever este texto.
(crônica escrita para o livro SUAS EXCELÊNCIAS, OS PERSONAGENS de 2024)