Frio Compadecido

   O dia ganha o seu único ponto alto: a temperatura decaiu. Acordei às 05h, dei ração ao Jorginho, meu gato manhoso, quando ele acordou no mesmo instante que eu (nossa, que “coincidência” desse gato malandro). O tempo estava em 17 °C, nuvens fechadas num desacordo moral entre a Lua e o céu; sequer pude vê-la dessa vez, acho que estava na fase crescente. Inspirei o ar gelado enquanto os pelos das minhas pernas respiravam essa frieza. Pensei em colocar os meus fones de ouvido e me dar um deleite estético de músicas calmas. Queria me flagrar novamente apaixonado por momento clichê de um jovem. Adoro o frio, é como se qualquer coisa do dia pudesse me tonificar só por estar frio. É uma brisa que embriaga os meus sentimentos mais belos. Enfim, já não importa agora, são 09h, 23 °C: tudo o que é bom nessa vida acaba numa abrupta rapidez.

   Estive pensando sobre a alienação. Eu não tenho visto os noticiários e nem as redes sociais, não faço ideia o que sucede à Rússia e a Ucrânia, o que o famoso x falou do y, o alarmante apagão da internet, isso ou aquilo. Permaneço enjoado de conhecer o mundo que me cerca. Muitas informações que recebemos permeiam apenas ansiedades inúteis. Reparemos que diversas notícias, especialmente as de cunho internacional, de nada ou pouco afetam o nosso cotidiano. O mundo segue sendo mundo, tem gente morrendo, outras nascendo; muitas anseiam a morte e outros têm medo dela. Não ressalto intencionalmente o discurso manjado despolitizado de que nada importa, não é o ponto, é óbvio que a política e a sociedade nos afetam. Estou falando sobre o indivíduo como espécie solitária. Quando me olho no espelho não enxergo o outro, assim como no jornal e nas redes sociais, não vejo nada além das minhas projeções emocionais: a raiva, o apreço, o amor, a indiferença, o riso, a tristeza e tudo o que imagino de mim no outro. Sinto-me mais leve quando estou alienado no meu mundo poético, as coisas fluem mais e meu psicológico parece se converter num estado de graça. Mas quem ouve esse tipo de narrativa ou se apruma em combatê-la, ou apoia. Este é o problema: não quero provar nada, e também não quero ser aceito! Lute por suas ideias, não se ancore nesta minha visão de mundo. As coisas mundanas estão terríveis, se vocês apoiarem o que digo, os problemas continuarão e a justiça perderá o conceito de ser justiça.

   O tempo passa rápido quando me atento a ele, já são 14h, aliás, horário que eu nasci. Não sei o porquê, mas entro em devaneio quando analiso informações inúteis como estas. Por que eu ligo que são 14h? Que relevância eu tive em nascer numa vespertina e provável quentura de sábado? Até consultei na internet: “São Paulo teve janeiro mais quente desde 1999”, matéria de 2012. Triste deve ter sido o meu parto em que o suor acompanhou o reluzir de uma nova existência. Falam de memória genética, mas acho bobagem: acredito na memória temporal, a energia que você terá quando sai das vísceras de sua mãe. Quem nasceu sobre uma temperatura errada como eu, repudiará o calor como quem repudia a lã que contrasta o buraco da agulha. Imagina se eu fosse famoso e soltasse uma nota como esta ao público, mal dormiria com os especialistas de plantão explicando que a memória genética, especialmente a memória temporal, não são científicas. Há sempre um espertalhão à espreita, como o Jorginho que se aproveita de seu rosto fofo para eu realizar suas vontades; tudo é opinião, tudo é um saco. Estando sobre a benção do anonimato posso escrever bobagens desmedidas sem me preocupar com essa sede de opinião de outrem. 

   São exatamente 20h, horário de contemplar a Lua, que está em fase de Lua nova. Dessa vez o horário não me dá inspiração de criar um roteiro por ser 20h; apenas sei que a temperatura por volta dos 19 °C ameniza o meu desconforto do calor. Sozinho olhando todo o céu lembro que não há opiniões do que eu deveria ou não achar sobre o céu. Alienado às estrelas me sinto, por hora, em paz.    

 

 

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 26/04/2024
Reeditado em 28/05/2024
Código do texto: T8050234
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