Luta de Gases
“Devo estar com algum problema no fígado”, o homem amarelo queixou-se enquanto reclamava sua bebida e a porção de fígado acebolado, que demorava.
“Por quê?”, fingiu se importar o cara com um celular na mão, rolando o feed incansavelmente.
“Tás sentindo, não? Ou tás com o nariz entupido?”
“Não, tô muito entorpecido de feed”, observou o cara. “Isso é pior do que crack, pode acreditar.”
“Já experimentei.”
“Feed?”
“Não, crack.”
“Experimenta o feed. Tem também compensações de curtidas quando você comenta alguma merda ou posta outra merda qualquer.”
“Parece legal!”
“É ótimo! Mais pra frente você vira rato de comentários... É um barato! O tempo passa que é uma beleza.”
“Roubaram meu celular, mas vou comprar outro pra testar essas drogas aí…”
“Cara, isso que é felicidade.”
“Melhor que sexo?”
"Sexo dura poucos minutos; isso aqui, amigo, é dopamina o dia todo. O paraíso.”
“Já quero me dopar.”
“Mas então, e o teu fígado aí, tá muito mal?”
“Cara, tá sim. Tô sentindo muitas dores. Acho até que meus órgãos internos estão conspirando contra mim.”
"Bicho, você está precisando mesmo de umas doses curtas de auto ajuda. Tem uns canais aqui…”, fez uma pausa enquanto mostrava um vídeo de 30 segundos de uma criança empreendedora, depois, de um jovem falando sobre inteligência emocional, um coach…
“Cara, genial!”, admitiu e admirou-se o do fígado. E pro garçom, que assomava na mesa: “Porra, camarada, pensei que tinha esquecido de mim.”
“Desculpa aí a demora, do nada deu vontade de cagar.”
“E eu achando que garçom nunca cagava…”
“Por acaso garçom é a única categoria que não tem cu?”
“Seria cômico”, riu com um comentário de uma conversa aleatória no X o cara do feed.
“Também não precisa ser tão grosso…”
“Grossa é a pica que entra no cu da gente no final do mês.” “Quer que eu deixe a garrafa?”
“E eu me contento com migalhas?”
O Fígado: qual é o problema desse cara, que só me joga uma água ardente terrível de filtrar!? O cara acha que sou escravo dele...
Disse o Rim, o menos mal humorado dos órgãos: tenha paciência com ele.
O coração, por sua vez, retrucou: pois eu no teu lugar declararia falência.
- Ou faria uma greve - corroborou o intestino, classe operária do corpo, infeliz com as péssimas condições de um trabalho de merda, e sem adicional de insalubridade.
- Cara, e eu e meu irmão, que esse canalha envenena o dia todo com uma fumaça negra cheia de toxinas letais - suspirou o pulmão, exaurido e moribundo.
- E eu, que sou arregaçado na sua prisão de ventre? - quase chorou o Cu.
O Pênis ficou em silêncio, impotente.
- Beleza, gente - levantou-se o Fígado, impaciente, e fez-se ouvir: - Sei que esse cara é um tremendo egoísta filho da puta, mas estamos presos em seu corpo, e não podemos fugir disso.
- Mas podemos infligir-lhe dor e sofrimento, pra variar - redarguiu a Bexiga, cheia, querendo se aliviar.
- Verdade! - o Baço abraçou a ideia do irmão de luta -. Morte ao corpo humano!
- Daí, iremos também morrer - retrucou o Fígado, amarelando com a ideia radical do vizinho.
- Já estamos mortos - pensou alto o Cérebro.
- Eu já estou farto de tanto mimimi. Vocês reclamam demais! Deveriam agradecer a Ele. Amem ou deixem-no. - roncou o Estômago, vazio.
- Estou do lado do irmão Fígado - finalmente o Pâncreas resolveu tomar partido. - Vamos nos unir, pois separados, somos...
- Organismo?
- Não dá para nos unirmos. Já te ocorreu que estamos presos como naquele Mito? - a voz sábia do Cérebro iluminou como um facho de luz a caverna interna do corpo.
- Isso é uma prisão mental - socorreu o Coração.
- Sim! NÃO! Pera, eu não estava falando literalmente.
- E existe outro significado pra se unir senão se unir? - propôs um problema linguístico a Língua.
- Não! Digo, SIM! Eu falava... Era uma figura de linguagem...
- Já vem o Pâncreas com academicismo... - suspirou o Baço, envergonhado com tanto discurso e pouco ato. - Esses burocratas...
- Porra, ele já tá me fritando de novo com aquela água de fogo. - Urrou o Fígado.
- E eu acho que vou estourar - disse a bexiga, rubra de raiva e de tanto segurar.
- Pior é o meu lado: aquela fumaça miserável tá me deixando sem ar - arfou o Pulmão.
- Vocês reclamam de barriga cheia - fez o Estômago, patriota.
- Vai se foder, gado! Ele te mata de fome, faz tu produzir suco gástrico em vão, e ainda tu lambe as bolas murchas desse tirano, arrombado - agora foi o Rim, que, no começo falava em ter paciência, quem mudou de lado. - Né pra ser ruim, então vou ser, carai!
- Morte aos fachos - bradou o Baço, os braços erguidos, punhos fechados, se assim os tivessem.
- Devemos ter diálogo - berrou o Pâncreas, em contrapartida.
- Diálogo um caralho - finalmente o Cérebro resolveu sair lá de cima de sua caverna. - Aquele energúmeno quer me atrofiar com umas drogas de redes sociais e teorias da conspiração - disse com emoção, cerrando os dentes, de modo que comoveu o espírito de luta dos outros órgãos.
- Uni-vos!
- Morte ao corpo humano e seus mecanismos de opressão!
- Se o Estômago não se juntar à Revolução, morte a ele também! - vociferaram os intelectuais.
- Morte a ele também, morte a ele também - marcharam os operários, metaforicamente.
- Reitero: deveriam pregar amor, não ódio! Não sejamos iguais aos nossos algozes - insistiu o Pâncreas.
- Morte ao Pâncreas também - ameaçaram as vozes em uníssono. Então, finalmente, o Pâncreas calou-se. O Estômago já havia entendido a mensagem muito antes…
- E eu, o que é que eu faço? - disse o Apêndice, absorto e atarantado, sem saber por que o narrador o removeu da história.