Cicatrizes
Eu sempre andei na contramão. Talvez pq na contramão dê pra sentir o vento bater no rosto, quem sabe.
Andar na contramão não é de todo ruim. A gente enxerga por um ângulo em que todos aqueles que caminham no mesmo fluxo não enxergam. Olhamos nos olhos de quem passa por nós, afinal, estamos na contramão.
Por andar na contramão, tenho uma inata mania de apreciar coisas que ninguém aprecia. Caramujos no jardim, por exemplo. Desde que eles lá e eu cá, gosto deles. Possuem uma habilidade que perdi faz tempo: serenidade. Nascer em uma metrópole me obrigou a abandonar o prazer deste estado de espírito. Faz parte.
Aprecio outra coisa incomum: cicatrizes. Enquanto todo mundo se vira nos trinta pra camuflar uma marca na pele, eu sempre fui infeliz por não ter uma marca de nascença: uma pinta, uma mancha, um desejo materno não atendido e transformado magnificamente em tatuagem pelos nossos genes. Não tenho nada.
As cicatrizes das cirurgias que necessitei fazer, cuido com carinho, afinal, sinalizam que algo não ia bem e que, graças a elas, estou aqui, vivíssima da silva. Jamais tatuaria uma rosa em cima, ou uma borboleta, ou qualquer que fosse a imagem. Minhas cicatrizes são capítulos da minha história: ninguém vira a página sem antes ler!
Há também aquelas cicatrizes abstratas, que as pessoas adquirem e às vezes não percebem a profundidade do corte. A maternidade é uma delas.
Ser mãe causa um corte tão profundo em nós, que chega a dar tontura, vertigens, mal estar mesmo. Perdemos a consciência. Mesmo aquelas mais quietinhas, com espírito de caramujo, viram leoas quando se tornam mães. Uma cicatriz no nosso jeito de ser impossível de camuflar.
Talvez por uma necessidade comercial, pintam a maternidade como se fosse uma propaganda de margarina, filmada em câmera lenta, com música clássica ao fundo. Mentira! Não caia nessa! Ser mãe (como qualquer corte até atingir a cicatrização), dói, lateja, inflama, te perturba mesmo! E paralelo a isso, vc não dorme mais. Se o sono cura qualquer enfermidade, comece a acreditar naquela velha frase que te diziam quando se machucava ainda criança: antes de casar sara! Porque se depender da imediatismo do sono para isso... esquece!
E aquela história de que mãe vive com o avental sujo de ovo? É propaganda enganosa, jamais acredite nisso. Pois a correria é tanta que não dá tempo de colocar o avental. Ficamos com ovo até nos cabelos, mas o avental continua lá, impecável, como éramos antes de nos tornarmos mães.
A verdade é que quando nos tornamos mães, percebemos como éramos vazias. Não no sentido da ausência de valores, mas num sentido físico mesmo. Percebemos que entre a cadeira e a mesa do jantar há um espaço enorme que pode ser preenchido. E é. Esqueça boas maneiras. Guardanapo no colo é coisa do passado.
Banho demorado? Perfeito pra quem tem filho! Porque agora, além de tomar banho acompanhada, vc terá de contar a história do sapo que não lava o pé, do jacaré que gosta de comer e do pintinho amarelinho. Lutemos para nos isentarmos da economia da água. Com um bebê em casa, isso é impossível.
Mãe, uma palavrinha tão pequena para um significado tão grande. E não importa se você é a mãe que gerou, a mãe que criou, a que cuidou, a que salvou, a que simplesmente ouviu. Não importa também se vc é um homem se passando por mãe, afinal, ser mãe não é gênero. Ser mãe é estado de espírito, é condição que a vida impõe. É um corte no nosso jeito de ser, daqueles bem profundos, profundos mesmo, cuja dor é inevitável e a cicatriz opcional, porém, quando assumida, chega a ter outro nome: um tal de amor incondicional.