23 de abril
“Quando foi que o outono chegou?”. Com essa simples pergunta, Charlotte King, vinte anos depois da citação original, me fez compreender que já é outono no Rio de Janeiro. É óbvio que eu já havia notado o céu de outono diversas vezes. Aquele colorido no céu entardecente, com um degradê entre laranja, lilás e azul; um show à parte na dinâmica Rio de Janeiro. Contudo, Guimarães Rosa já havia indicado que o correr da vida embrulha tudo, e faz isso de tal forma, que a gente sabe, mas não percebe as mudanças da vida.
É nítido que a vida mudou, que o céu, ora tão anuviado, foi desanuviado por quem em definitivo é de verdade, que a vida seguiu seu curso natural e mudou, que as batalhas me levaram a ser leão, e não raramente, ser um gatinho indefeso, e que a sala de aula segue me salvando todos os dias. Sei disso tudo, e não senti nada disso acontecer. O tempo do viver é absurdamente diferente do tempo que analisa. Quantas vezes a certeza das boas experiências só chega após o findar. Será que saber que era bom, enquanto se era, mudaria o curso? Será que faria tudo ser melhor? Será que me faria ser melhor?
Não sei, e acho que já não me cabe mais correr atrás do que foi. No turbilhão que é tentar regular o relógio do capital - quem mais embrulharia tudo, se não ele? - tenho pensado muito na minha dinâmica em sala como professor. Dia desses, dando aula no nono ano, me dei conta que faz 10 anos que eu estava no nono ano, lotado de expectativas sobre como seria o Ensino Médio, e o quão mais próximo do Ensino Superior eu estava. No fundo, a sensação é de que me levantei da carteira, saí da sala, andei pelo corredor, e voltei como professor. Outro dia eu estava lá, como é que estou aqui? Outro dia era eu levando um esporro porque meu caderno estava uma bagunça, como é que agora sou eu que aplico os sermões? O tempo transcorreu sem que eu me desse conta. O outono veio, o outono foi, e eu senti, só não sabia que era ele chegando, mudando e partindo. Saber disso alteraria algo?
Acho que não mudaria nada, acho que tudo aconteceu como deveria ter acontecido, uma visão determinista pra um agnóstico em 90% do tempo, ainda que hoje eu seja 100% crente em tudo, porque hoje é 23/04, feriado no Rio de Janeiro, dia de São Jorge padroeiro do Estado, sincretizado com Ogum, o guerreiro valente que cuida da gente, e que celebramos os feitos justamente no outono. Jorge, que dá confiança pra uma criança virar um leão, cavaleiro dos céus de outono e escudeiro da paz. Jorge, que no embrulhar da vida, desembrulha tudo em forma de reza, prece, ponto e poesia. Jorge que protege esse povo brasileiro, que também possui alma de guerreiro. Jorge que fortalece quem precisa enfrentar um leão por dia. Jorge que acompanha, inclusive, quem não tem fé nele.
Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos,
tendo pés não me alcancem,
tendo mãos não me peguem,
tendo olhos não me vejam,
e nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo o meu corpo não alcançarão,
facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar,
cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.