Entre Sem Bater - Democracia Relativa
Ernesto Geisel disse:
"... ess relatividade do conceito (de democracia) foi reconhecida sempre, desde Aristóteles e Stuart Mills. Não se compreende, assim, como haja ainda quem se admire e espante com a expressão tão comezinha como democracia relativa ..."(1)
O General-presidente começou na atividade política numa revolução "tenentista". A maioria da população não sabe, mas os movimentos tenentistas(2) representam a falácia de todas as revoluções tupiniquins. Em outras palavras, seja Revolução de 30 (Geisel Tenente) ou de 1964, é tudo golpe. Como se não bastasse, esses tenentes estão no poder desde que a Monarquia começou a afundar. Frases de Geisel, que tinha uma cultura acima da média, podiam mostrar que ele contribuiu acima das expectativas e histórico de militares.
DEMOCRACIA RELATIVA
O termo democracia relativa pode ter várias interpretações, e na prolixidade da frase de Geisel, embaralha a cabeça de muita gente. Inegavelmente, o general controlou gregos e troianos e fez com que parecesse um democrata que tinha pouca ojeriza(*) da esquerda. Surpreendentemente, muitos brasileiros acreditam que ele, como presidente, sozinho, foi benevolente ao promover o fim da ditadura.
- "Se é vontade do povo brasileiro eu promoverei a Abertura Política no Brasil...".
Desse modo, seria necessário uma verdadeira tese para definir e aplicar o que o general defendia como democracia relativa. Certamente, deveria ser algo próximo a uma quase democracia ou uma não-democracia. Por outro lado, devemos reconhecer que o Brasil produz fatos históricos sui generis.
Temos, por exemplo, três que não encontram similares no planeta:
Brasil Colônia transformando-se em Metrópole e Reino Unido;
Independência do colonizador por acordo e dívida financeira;
Proclamação da República por golpe ;
Revolução de forças armadas sem participação popular;
Tentativa de golpe com minuta de decreto intervencionista.
Enfim, a lista é grande e ainda tem gente que pensa estarmos vivendo numa democracia relativa ou oligárquica.
DEMOCRACIA GUIADA
O termo "democracia" é alvo de uma gama impressionante de adjetivações ao longo dos anos. Desde "guiada" até "relativa" e "irrestrita", cada qual parece tentar moldar e definir esse conceito bastante complexo. No entanto, há uma reflexão necessária: será que essas adjetivações realmente enriquecem nossa compreensão da democracia? É provável que todas as adjetivações deturpam e se desviam das raízes conceituais antigas e revolucionárias.
Ernesto Geisel, ao mencionar a "democracia relativa", expressou sua perplexidade diante da reação das pessoas. De fato, sua perplexidade deveria ser na direção de tentarmos qualificar a democracia.
A democracia, em sua essência, deveria ser um sistema político(3) onde o poder reside nas mãos do povo. Ou seja, cada indivíduo deve ter liberdade de voz e voto, sem pressão de outros cidadãos por qualquer pretexto. Assim sendo, qualquer democracia deveria prescindir de qualificadores adicionais. Quando a adjetivamos, desviamos o foco do princípio da democracia para outras considerações, sejam elas sociais, econômicas ou culturais.
Vivemos, no Brasil, desde a Proclamação da República, uma democracia sob controle de pequenos grupos e oligarquias.
DEMOCRACIA PURA
A democracia, em sua forma mais pura, remonta à antiga Grécia, onde os cidadãos participavam diretamente das decisões políticas. Era um ideal que valorizava a igualdade, a liberdade e a participação ativa dos cidadãos na governança da cidade. No entanto, ao imaginar uma democracia relativa ou "irrestrita", nos afastamos da democracia pura. Em outras palavras, estamos nos contentando com uma versão diluída, uma sombra da verdadeira democracia, inalcançável ou impraticável.
A democracia "guiada" sugere, por exemplo, que precisa de orientação, que não pode se sustentar por si só. Contudo, na verdade, a democracia deveria ter a guia da vontade do povo, não de líderes, representantes ou ideologias. Com toda a certeza, as necessidades e aspirações da sociedade, e não por interesses particulares ou agendas políticas, são a prioridade.
DEMOCRACIAS E ADJETIVAÇÕES
Por outro lado, a democracia relativa implica que sua validade e aplicação estão sujeitas a circunstâncias variáveis. É provável que a democracia de Geisel seja deste tipo e, por isso, ele sentia-se surpreso pela maioria não entendê-lo.
Certamente, a verdadeira democracia não pode ser relativa; ela é universal em sua essência, uma aspiração que transcende fronteiras e culturas. Reduzi-la a uma mera questão de relativização é negar sua natureza fundamentalmente igualitária.
Surpreendentemente, surgem termos como democracia "irrestrita" e outras que só abrem o leque do subjetivismo. Este termo insinua, sem dúvida, uma ausência de limites, uma liberdade sem freios, onde só existem direitos. Parece que o Brasil vive este momento com aqueles que pedem liberdade de expressão(4), sem nenhuma responsabilidade.
Por exemplo, tomemos um grupo de pessoas que debatem sobre futebol numa rede social. Homens e mulheres, jovens e adultos, religiosos e ateus, mas o tema é futebol. De repente, um destes defensores da democracia relativa solta palavrões, dirige impropérios, fala mentiras e blasfêmias que não são de futebol. É possível que, nestes casos, pode-se arguir liberdade de expressão e espírito de democracia?
A falta de respeito, com a plena estultice e ignorância que as redes sociais propiciam, provam que Geisel não sabia o que era democracia relativa.
Estamos perdendo a batalha da inclusão digital com civilidade e racionalidade, o vale-tudo começou.
LIBERDADE AINDA QUE TARDIA
O lema da bandeira de Minas Gerais parece a antítese da história de Minas Gerais e do Brasil. Parece que vivemos uma eterna democracia relativa como marionetes que alguém movimenta as cordinhas, e ficamos inertes.
Desta forma, é necessário praticar o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, entre direitos individuais e o bem comum. Não basta pensar que votar em máquinas eletrônicas com divulgação de vencedores quase instantaneamente, achando ser uma democracia. Talvez, votar e ver seu candidato vencedor seja a tal da democracia relativa. E se, eventualmente, seu candidato perder, aproveitamos o conceito e planejamos um golpe.
Com toda a certeza, em toda relativização, corremos o risco de permitir a tirania da maioria ou a marginalização das minorias.
Em suma, adjetivar a democracia pode parecer uma tentativa de tornar o conceito mais preciso ou adaptável. Contudo, na realidade, pode obscurecer sua essência, sobretudo se a manipulação de massas atinge os níveis da atualidade.
A verdadeira democracia não precisa de qualificadores; ela é atemporal e deve desafiar as sociedades em sua busca por justiça, igualdade e liberdade.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) Atribui-se a Ernesto Geisel a frase: "Tu sabes perfeitamente que eu não sou infenso às esquerdas" em declaração a outro general.
(1) "Entre Sem Bater - Ernesto Geisel - Democracia Relativa" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/04/23/entre-sem-bater-ernesto-geisel-democracia-relativa/
(2) "Entre Sem Bater - Murillo de Aragão - O Neotenentismo do Século XXI" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/09/07/entre-sem-bater-murillo-de-aragao-o-neotenentismo-do-seculo-xxi/
(3) "Entre Sem Bater - Charles de Gaulle - Sistema Político" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/12/22/entre-sem-bater-charles-de-gaulle-sistema-politico/
(4) "Entre Sem bater - Benjamim Franklin - A Liberdade de Expressão" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/12/24/entre-sem-bater-benjamin-franklin-a-liberdade-de-expressao/