Crônicas Médicas - Maria que Apanha
Quase dezoito anos atrás o país comemorava a publicação de uma lei que, na teoria, nascia para trazer segurança às mulheres que sofriam nas mãos de homens covardes: a Lei Maria da Penha. Hoje, depois de algumas edições, com a lei próxima de atingir a maioridade, seus benefícios práticos podem ser colocados em xeque.
Dizer que a lei não ajudou a população feminina seria mentira, mas é fato que ainda existem muitas lacunas que precisam ser preenchidas. Uma delas, talvez a principal, é fazer a lei ser aplicada. É triste vivenciar uma sociedade cheia de mazelas e ainda ver mulheres sendo vítimas de agressões cruéis por parte de seus parceiros, vivendo sem a possibilidade de deixá-los (devido a múltiplas fragilidades sociais, pessoais, culturais, financeiras, psicológicas) e sem amparo para denunciá-los, por saberem, ou imaginarem, que o sistema não as manterá seguras.
* * *
Era, até aquele momento, uma manhã um tanto quanto tediosa na base do SAMU. O calor tomava conta do dia, alguns profissionais iam e vinham com seus afazeres, e eu intercalava momentos sentado na salinha com ar condicionado e instantes ao ar livre, tomando um pouco de sol. Nenhuma ocorrência havia surgido até pouco mais de nove horas.
“Bora?”, chamou o doutor que estava de plantão, encaminhando-se para a ambulância. “Ocorrência agora”.
Prontamente, eu, a enfermeira e o condutor também fomos para o veículo, fechamos as portas e esperamos as coordenadas. No rádio, um profissional na central do SAMU passava as orientações sobre o caso. Primeiramente, disse-nos o endereço, cerca de vinte minutos da base onde estávamos, e, depois, descreveu o ocorrido:
“Paciente feminina, vítima de agressão na cabeça e deixada em via pública. Agressor não está mais no local. Há também a possibilidade de ferimento com faca. Polícia foi acionada para se encaminhar até lá”.
Tiramos a ambulância da garagem, ligamos a sirene e partimos para o endereço da ocorrência. A toda velocidade, o carro balançava para lá e para cá, costurava o trânsito que cedia espaço para passarmos e atravessava sinais vermelhos (quando havia segurança). Em pouco mais de 10 minutos chegamos ao local da agressão, uma rua de terra, cheia de buracos, na periferia de Campo Grande.
Ainda de dentro da ambulância, pude ver, sentada na calçada, junto a um portão, uma figura franzina que abraçava as próprias pernas, apoiando a cabeça sobre os joelhos. Seus braços e pernas estavam sujos de poeira misturada com um pouco de sangue, e seu rosto se encontrava molhado pelas lágrimas que escorriam rumo ao chão. Encostamos o veículo e descemos.
“Oi, bom dia”, o médico chamou a jovem. “Qual o seu nome? O que foi que aconteceu?”
“Me chamo Maria”, respondeu com a voz entrecortada pelo choro. “Uns trinta minutos atrás, o cara bateu em mim aqui na cabeça, com a ponta de uma faca. Acho que cortou um pouco”.
“Esse cara que agrediu você era o que seu?”, perguntou o médico enquanto examinava o ferimento na cabeça da mulher, uma marca puntiforme não muito grande e que já não sangrava mais.
“A gente tava junto”, respondeu Maria.
“E você mora onde? Com ele?”
“Não sou daqui, sou de uma cidade aqui perto. Mas tava morando aqui com ele, ali pra baixo”.
“Até que dia você estava lá?”
“Até hoje. Só quero voltar para minha cidade”.
“Senta ali na ambulância pra gente dar uma olhadinha nesse machucado e levar você para a UPA”, ofereceu o médico. “Pode sentar ali na maca”.
“Não tem como só fazer um curativo e me liberar?”, pediu a moça, com a voz revelando uma pitada de medo e de insegurança. “Eu não quero ir pra nenhum lugar assim, não. Vão querer chamar a polícia e o cara vai vir atrás de mim para me matar. Ele é ex-presidiário, está de tornozeleira”.
“Vamos conversar um pouquinho”, dialogou o médico. “A gente é mandado para cá para fazer um primeiro atendimento e te levar para alguma unidade para receber uma atenção mais completa, fazer exames e, nesse caso, ficar em observação”.
“Mas eles vão chamar a polícia e ele vai vir atrás de mim”.
“A polícia já está acionada”, explicou o médico de forma bastante tranquila. “Eles vão passar aqui na região para fazer uma ronda e, se possível, conversar com você. Mas vamos lá, vou ser bastante sincero com você. A gente vem com o intuito de te levar para ser atendida, mas a gente não leva ninguém contra a própria vontade. Não é o que eu oriento. O ideal é ir para uma UPA, fazer exames e ficar em observação, mas você já é maior de idade, está consciente e orientada, e, se realmente não quiser, pode assinar um termo e a gente não te leva. Mas não é isso que eu orientaria como a melhor escolha no seu caso”.
“Eu realmente não quero ir”, disse a jovem, passando a sensação de quem imaginava que o sistema não seria de grande ajuda. “Tem como só fazer um curativo e me deixar aqui?”
“Sim, claro”, respondeu o médico. “Só vou precisar de algumas informações. Como é o seu nome completo?”
“Maria de Souza”.
“É assim que está no documento? Tem mais algum nome?”
“Sim, é desse jeito mesmo. Já tenho o documento com o nome social, tudo certinho. Só que o documento ficou na casa dele”.
“Não tem problema. Além da cabeça, tem mais algum lugar machucado?”
Ela mostrou as duas mãos, que estavam inchadas e dolorosas à movimentação. “Ele me chutou aqui também”.
Nesse instante, a viatura da polícia chegou ao local. Três policiais desceram. Enquanto um chamava o médico para perguntar sobre o caso, os outros dois foram conversar com a paciente ainda na ambulância.
Quando a enfermeira terminou de fazer a limpeza dos ferimentos e colocar os curativos, a paciente assinou os documentos e desceu para a rua, dando seguimento na sua conversa com os policiais e com o médico. Depois de alguns minutos, o doutor retornou e informou que a mulher foi convencida a ir, pelo menos, para a delegacia. Dali, voltamos para a base do SAMU após mais um caso de agressão contra a mulher.
* * *
A Maria dessa história não se chamava, de fato, Maria, mas era tão real quanto qualquer outra mulher que sofre nas mãos de um homem. Essa Maria é mulher trans, pobre e de periferia, e agora, para muitos, torna-se apenas mais um número nas estatísticas que não param de crescer. Para esses muitos, os números só deixarão de ser um personagem de uma crônica qualquer quando a Maria que apanha na história ganhar um rosto conhecido e habitar seu coração. Espero que esse não seja o caso de quem está lendo esse relato, que, por sinal, é verdadeiro.