A Política e a Morte

Após seis décadas e meia nesta terra, o coração de seu Nicolau decidiu que era hora de parar de bater. Os sintomas não foram percebidos a tempo, a dormência no braço, aquela falta de fôlego e uma sensação que lembrava indigestão. Nicolau lembrava de alguns vultos, de ouvir gritos da família e logo depois tudo apagou, igual ao seu antigo televisor de tubo quando queimava, a imagem fugiu de seus olhos das bordas rumo ao centro.

Depois de um longo momento de silêncio e escuridão, uma forte luz emergiu ao seu redor como em um flash. Sentiu seu corpo flutuando ao mesmo tempo que tentava adaptar os olhos àquela luz. Quando percebeu, estava em uma longa fila onde todas as pessoas trajavam branco. Ainda confuso, olhou para baixo e viu que seus trajes eram iguais aos dos demais e que, assim como eles, também estava descalço. “Será que teve um arrastão?” tentou lembrar ele, querendo adivinhar onde foram os sapatos de todo mundo.

Após olhar com calma para o chão que mais parecia algodão, olhar ao redor e ver um cidadão com um longo par de asas brancas passar voando por cima da fila, a mensagem foi finalmente captada… “Morri”.

“Devia ter largado o cigarro”, pensava ele, como se fizesse um cálculo matemático com os hábitos que tinha em vida para tentar entender a morte. “Ah… Aquele torresmo com cervejinha… Só pode ter sido o torresmo”, insistia. Mas ali, perdido em pensamentos entre tentar lembrar da morte e assimilar as suas causas, que uma voz lhe tira do transe.

- Seu Nicolau - Acenava um homem logo mais adiante da fila tentando alcançá-lo.

“Será que nem na morte eu tenho sossego?”, pensou. O homem que se aproximava era o vizinho, Seu Omar, com quem nunca se deu bem e que por coincidência do destino, morreu no mesmo dia. A desavença entre os dois já era coisa antiga, desde o colégio onde disputaram a mesma garota. Depois, por acaso, viraram vizinhos e no primeiro final de semana de futebol já descobriram mais desavenças, um era Gremista e o outro era Colorado. Por fim, com o avanço da tecnologia em crises familiares, a política foi o fator para levar a desavença à beira de uma guerra, afinal Seu Omar era fã do Lula e Nicolau era fanático pelo Bolsonaro.

- Ué, Omar, o que está fazendo aqui? - Disse Nicolau, ficando de cara fechada.

- O que te parece? Morri.

- Sim, isso estou notando, mas ainda não entendi - Insiste.

- Acho que foi um ataque cardíaco fulminante enquanto assistia ao noticiário - explica Omar.

- Sim, mas não entendi porque você está na fila para entrar no céu, seu comunista - fala Nicolau, aumentando o tom.

- Nem depois de morto… Nem depois de morto você para de mugir asneiras - diz Omar.

- Vocês não são todos do ateísmo, não? Vocês e aquele quatro dedos que não se compara ao capitão, que é um homem de Deus.

- Não, não sou ateu e não sou comunista, mas devo ter tomado caipirinha no santo grau para ter aturado você em vida e também agora na morte. Eu sou católico, assim como você, Nicolau. E o tal do teu mito lá andava indo era em igreja evangélica.

- Não sei que punição é essa que eu recebo de te encontrar até aqui com essas tuas calúnias. Você é tão mentiroso que essa tua língua de trapo deve dar a volta na terra - Esbravejou Nicolau.

- Ahhh… Então agora o Senhor já concorda que a terra é redonda? Olha que evolução - Provocou Omar.

- Falastrão, mas logo vamos saber quem vai entrar e quem vai ficar de fora do Paraíso, espera só - disse Nicolau com confiança.

- Só mais 72 horas? - Provocou Omar.

Nicolau fechou a cara e os dois seguiram marchando lado a lado em pequenos passos conforme a fila permitia, logo fica visível bem mais à frente um grande portão de ouro. Omar achou tudo um tanto mais “elitizado” do que ele imaginava, mas tentou manter a tranquilidade.

- Ainda acha que um chinelão que nem você vai passar? Mas nem se tentasse invadir o paraíso com todos os terroristas do teu MST - vociferou Nicolau.

- Ah, mas quem não vai entrar é você nem com todo o gado louco mugindo pela rampa do palácio do planalto acima - Respondeu Omar, perdendo a paciência.

Quando finalmente chegaram à ponta da fila, São Pedro com seu livro em mão os recebeu. Omar tentou abrir o bico e fazer a dianteira, mas Nicolau lhe empurrou com o ombro e já começou sua argumentação.

- Com licença São Pedro, mas eu vou primeiro e já adianto uma coisa aqui para o senhor, este ali é um deles.

- Um deles? - Pergunta São Pedro confuso.

- Um comunista - responde Nicolau sussurrando.

- E? - Questiona São Pedro.

- Como assim ? Vocês deixam comunistas entrarem no céu?

- Olha, na verdade não costumamos levar uma visão política muito em conta, não tanto quanto os atos, os feitos, a trajetória e assim por diante. - Explicou São Pedro.

- Isso é um absurdo, eu exijo falar com um superior - insiste Nicolau com raiva ao ver a satisfação na cara do Seu Omar.

- Oi? - Pergunta São Pedro ainda mais confuso.

- Exijo falar com um superior. SU-PE-RI-OR.

Em todos os anos de serviço, São Pedro nunca viu uma cena como aquela, mas como gostava de fugir da rotina e não tinha uma boa compreensão dos humanos, resolveu chamar alguém do escritório geral. Assim que chega um de seus superiores, ele aponta para sinalizar que foi Nicolau que o chamou.

Seu Nicolau ficou boquiaberto enquanto o superior se aproximava.

- Caralho, no fim eu que vou me dar mal mesmo. Até esse comunista do Chê.

Guevara tá por aqui. - Exclamou Nicolau apavorado.

- É Jesus, sua mula - disse Omar o cutucando.

Jesus já compreendendo a situação, se aproxima ainda mais de Nicolau, coloca a mão em seu ombro de uma maneira singela e fala com voz calma:

- Meu filho… Eu não ensinei a repartir o pão? Eu não ensinei que os homens são iguais perante Deus, independente de suas posses e convicções?

- Ensinou sim - Disse Nicolau baixando a cabeça.

- Eu não ensinei a não julgar para não ser julgado? - Seguiu Jesus.

- Mas até esse comunista aqui? - Perguntou Nicolau.

- Todos somos filhos do mesmo Deus. - Respondeu Jesus.

Nicolau pensou por alguns instantes, olhou para a cara de satisfação de Omar que agora era ainda maior. Será que não era hora de deixar aquela rivalidade de lado na hora do descanso eterno?

Não!

- Absurdo, eu não admito. Você pode ser filho do homem, mas não tem mais autoridade que ele, eu quero falar com Deus, QUERO FALAR COM DEUS - insistiu Nicolau levantando a voz.

Jesus respira fundo, coloca a mão no ombro de Nicolau novamente e fala:

- Meu filho, não vai dar… Ele ta em uma reunião de emergência com o centrão.

Tiago Silveira
Enviado por Tiago Silveira em 22/04/2024
Código do texto: T8047328
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