Amor em chamas
Tenho um coração em chamas, mas ele nunca me disse o que realmente queria da vida. Fiquei preso durante tantos anos dentro dele, que acabei perdendo a mim mesmo e meus sonhos. Abri a porta do coração para tanta gente. Eu disse sim, simplesmente mergulhei nas promessas vazias. Era sempre a mesma estória, eu sou diferente, somos diferentes, amorzinho para cá, amorzinho para lá e a dança da solidão foi pedindo espaço e quando vi não restaram nem saudades, mas muitos medos e muitas dúvidas.
Ela tinha tantos rostos, tantos cabelos, tantos olhares, tantas curvas e tantas cicatrizes iguais às minhas. O criador simplesmente nos acorrentou em uma necessidade imensa de estar com alguém. O vazio existe, ele é real. A carreira mais promissora e o dinheiro maior do mundo não acabam com as dores da idade e do pensamento abalado.
Eu não estava mais preparado para viver assim, então decidi seguir, me instruir, se desenvolver como pessoa. Mergulhei nos cursos de autoajuda. Me virei para parecer forte. Uma busca incessante e maravilhosa pelo caminho da evolução humana. Mas para quem contar esses meus avanços? Para quem partilhar essas minhas conquistas? Falo a um amigo e ele zomba de mim. Falo para um parente e ele olha com o olhar torto da inveja.
Alguém torce de verdade pelo nosso bem? No fundo, estamos concorrendo sempre. Eu corria atrás. As festas eram o lugar mais barulhento, mais engraçado e mais triste de estar em busca de um amor, de um carinho. Meu olhar demonstrava facilmente a minha carência, eu não precisava dizer mais nada. Todas percebiam, era tantas rejeições que a dor só aumentava.
Então numa noite eu saí só para ouvir música, cantar em um karaokê e beber umas cervejas. Quando me vi estávamos cantando juntos, as mãos estavam entrelaçadas. A minha felicidade foi tanta, que eu nem percebi, você saiu e eu nem sabia seu nome. Nem podia dizer algo a você, pois apenas cantamos, não fizemos mais nada, além disso. As mãos dadas, o abraço e olhar no meio da canção foi o que restou.
Foi o que restou. As chamas estão adormecidas. Nem ego existe mais, nem fome de ir até o encontro. Sou mais um alguém sozinho. Cercado por olhares, por pessoas que não dizem nada, não se manifestam.
— Senhor, você poderia me ajudar a encontrar a padaria mais próxima? — A jovem bonita me perguntou.
— Sim, posso é só seguir dois quarteirões adiante e dobrar a direita. Fica bem na esquina — Respondi mesmo sabendo que era só isso.
Ultimamente tenho servido só para isso, dar informações às pessoas. Algumas agradecem, outras nem isso. E quando tentarei dizer algo, elas nem se interessam. Será a minha idade? Quando eu tinha 19, 20, eu nem precisava falar, meu olhar já atraia, meus sentidos iam ao encontro de outros desejos e tudo acontecia naturalmente. Mas hoje, 44 anos, eu me sinto meio sem saber o que dizer. Sou bastante sábio para entender que a minha condição econômica não me permite nem ter um tênis confortável, um plano de saúde. Que dirá ter alguém que se importe comigo, que sorria das mesmas coisas que eu.
Tenho de entender isso. Mais um porre, mais uma manhã caindo entre lençóis e o calor incessante. A preguiça de levantar-se veio acompanhada do desejo de ficar ali olhando para o teto, sem saber o que pensar. A obrigação chamou. Era segunda-feira, tomar banho, estudar, comer, trabalhar, viver e depois de dois dias tudo estava nos trilhos, foco total em subir as escadas da virada econômica. Joguei o bilhete da loteria. Já pensou se eu ganho? Tenho uma lista interminável de coisas para fazer. E de pessoas a conhecer.
Alguém falou, no You Tube, ‘dinheiro não traz felicidades’. Concordo, mas também a falta dele nunca me fez feliz. Resolveremos isso logo. Deixar de ouvir certas pessoas. Tem gente que gosta de manipular os outros. Não serei manipulado. Nem serei mais uma marionete do sistema. Vou ir somente isso.
— Meu amigo, não fique triste, você é tão inteligente, leu tantos livros, um poliglota, autodidata, sabe falar um bocado de gíria, se alegra — Me falou meu grande amigo, antes de partir. Foi nossa última conversa.
Se eu soubesse daquilo, eu havia pegado o violão e tocado a nossa música. Demito na minha vida várias amizades, mas a dele não. Era amigo real, ele estava em todos os momentos ao meu lado. Nada de estar só nas desgraças, mas sim nas felicidades também. Íamos ao estádio juntos, para praia também.
A mulher dele tinha um ciúme danado de nós dois. Queria nos separar, fez de tudo para que isso ocorresse. Mas ele foi firme, disse não. Seguimos fiel. Churrascos, cerveja aos domingos, vídeo game às quartas e missa aos sábados a noite. Mas ele era pai e eu tinha de entender; mas antes de morrer de câncer, deixou um bilhete de amizade.
Tive de voltar as noitadas, surgindo em bares por aí, a procura de uma companhia. Não queria pagar a ninguém. Queria sinceridade. E lá estava ela de novo, a morena, que cantou comigo no karaokê e pegou minha mão. Tentei não demonstrar muito afeto. Eu apenas disse o que podia dizer.
Mas foi cantando que se aproximamos novamente, dessa vez houve mais do que apenas músicas bonitas. Houve ainda um beijo, um sonho de sensação. Nem precisei ir, além disso. Queria apenas existir ao lado dela naquele instante. Não precisávamos ir a lugar algum. Só não queria mais me sentir perdido.
Mas ela foi embora e fiquei de novo com meus pensamentos e a fumaça cercando meu ambiente.
Não queria fumar, já tinha parado, mas quando bebia achava legal fazer o ato de levar o trago até a boca. Mas resisti, comprei uma pastilha e consumi-a ansiosamente até pegar o aplicativo de corrida e ir embora.