Monocrônica

O ponto certo de um bolo é o quão agoniada está uma cabeça. Não é à toa que dizem que quando a mulher está desesperada, com muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, a vontade quase irreprimível de fazer (não necessariamente de comer) algo em etapas, que suje utensílios específicos, que demande tempo, que necessite de esperança ou de técnica para que nasça bonito e em forma, é estranhamente comum. Eu sou muito de teorias. Quem me ouve pensa que eu faço tudo. E bem feito. Mas eu costumo subestimar receitas. Não sigo, não admiro, não rezo por elas. Não me ajoelho. Nunca, nunca utilizei a quantidade correta de açúcar e de óleo que as receitas pedem. É assustadoramente absurdo e desnecessário. Mesmo que o açúcar seja importante pra várias coisas que eu não sei dizer ( como a fermentação de pães e a consequente felicidade de uma nação), mas quem se importa com os fatos não lê uma crônica (não minha). O óleo é algo que ri de mim. Tudo bem que eu o desprezo um pouco. Apesar de ter estado muito caro anteriormente, motivo pelo qual houve a perda de sua aura de humildade, não vou dizer que não prefiro o outro. Sim, eu o amo. Mesmo que os mercados estejam colocando o seu preço parcelado, a fim de tentar eufemizar a situação, eu nunca precisei me convencer. Azeite é infinitamente superior, especialmente por não ser fatal. É algo que eu passaria no meu corpo e cabelos. Eu iria a Portugal por sua causa. Não pelos vinhos porque não bebo, mas teria o maior prazer em macerar uvas por entre meus dedos. Uma garrafa exclusiva de vinho do Porto chegaria até você, feito com uvas rigorosamente selecionadas e violentamente esmagadas pelos meus pés, resultando em um delicioso veneno. Faz você se apaixonar, te dá esperanças, depois te derruba, te humilha e te dá dor de cabeça (não pela qualidade do vinho, e sim pela intensidade da paixão). Que pensamento errado de minha parte, mas minha vontade de viver não pode ser diminuída com o passar dos anos. Ela só aumenta. Minha adolescência não vivida me faz querer passar pelo desafio de ancorar um navio no espaço, como diz minha poeta (poeta, não poetisa!) lisboeta de voz rouca e presença-maresia: Matilde Campilho. Ela diz o que eu gostaria de ter dito. Ana C. também. Adriana Calcanhotto. Hilda. Clarice. Luísa Sobral. Conceição. Ana Lygia. Minha bisavó Júlia. Minha prima Júlia de três anos. Sim, eu também gostaria de ter a brabeza ingênua de uma criança esperta. Se bem que eu fui pior. E me fizeram quieta, me pus tímida, virei um bichinho arredio. Sofri do mal de ser boa. Ainda sofro. Anseio pela chegada da filhadaputagem que todos carregam em si. Mas talvez eu não queira ser ruim, ruim. Eu quero ser boa-mas-não-besta. Aquela que é de bom coração, sim, mas que sabe dizer “não” sem precisar morrer por dentro. Não que eu não morra dizendo “sim”, o que na verdade não me recordo de dizer. Talvez eu seja mesmo muito medrosa e fraca pra quem não me conhece, como quem me disse isso. Mas o que ele não sabe é que do meu medo eu arranco uma força estranha que, mesmo que me enforque, me permite respirar. Algumas das minhas grandes conquistas foram o que eu não alcançei: o destemperamento total. O surto. A loucura. O buraco infinito. O apodrecimento. À parte disso, a cabeça-coração-estômago é uma fusão diabólica que nasceu em mim. Um mutante dentro do corpo de uma menina. Ou de uma mulher. Ainda não me decidi.

Enquanto isso, fiz o que não costumo fazer: me aventurei. Aventura pra quem não vive é comprar ingresso pra um show que você soube hoje, às 21h30, que teria amanhã — às 19h. Não pude me organizar, pensar na minha roupa, na vida, nos empecilhos, em nada. Comprei. E se comprei, eu vou. Gosto muito de Seu Pereira. É um dos meus traços restantes da adolescência cruel em Brasília. Tudo que eu fazia era conhecer mais de música. De arte. Não que hoje eu conheça muitas coisas. Talvez seja sobre buscar. Não deixar de buscar.

Ele é excelente. O que me restou da fase alternativa. Tenho raiva do falso moralismo que conheci. Da bestagem sudestina de uma elite farsante de si mesma que se autotraduz como “arte contra-hegemônica”. Por favor. Mas Seu Pereira, a meu ver, é um quase cinquentão muito massa de João Pessoa. Um poeta popular de voz grave que talvez beba mais do que deveria, talvez fume mais do que pode e talvez ame torto como todos os homens amam. Uns mais, outros menos. Uns verdadeiramente, outros menos. E a paixão de músico deve ser uma desgraça depois que acaba. Medo. Quem quiser me amar não vai sofrer, não. Não por isso. Eu escrevo umas coisas, mas nada como escrever e cantar. Não sei o que foi pra Sandra ter que ouvir “Drão”, mas eu que não sou Sandra posso adorar. Não imagino o que é ter que ouvir Nando Reis e saber que foi pra você. Não me conecto. Acho ruim, mas não é pior do que os artistas que ele apadrinha. Gosto de sua amiga Cássia Eller, da voz, da risada. Mas Nando não dá. Os Titãs são menos do que Os Mutantes, que sem Rita são só bichinhos. Gosto de Arnaldo Antunes com Marisa, só. E Carlinhos Brown é autossuficiente e onipresente.

Não sei se gosto da galera que gosta das coisas que eu gosto. E não sei se gosto de quem não gosta das coisas que eu gosto. Eu já vivi intensamente sem viver nada. Dentro de mim, já fui “viva a sociedade alternativa” de Raul Seixas há anos. Já fui de ouvir só o menos convencional. Não lembro quem são. Nomes chapados. Bandas bêbadas. Galera esquisita. Gente estranha. Festas doidas. Bem, nas festas eu nunca fui. Mas eu que não bebo e que não fumo não tenho exatamente ao que me apegar. Vou vestida de mim mesma. Antes eu queria ser hippie-moderna. Tenho alguns trajes dessa época. Cortei meu cabelo, fiz uma franja, raspei a lateral. Usei chinelos de couro. Queria colocar piercings, fazer tatuagem, beijar um guitarrista, agarrar um cabeludo que usa camisetas das melhores bandas de rock, ser posta contra a parede que abriga um pôster de Nirvana, falar de política e de poesia, dizer que não sou superfã de Legião e causar polêmica, dizer que mal ouço Nirvana e que minha camiseta foi meu pai me que deu, passar as madrugadas no Grêmio ouvindo música boa enquanto olho pra quem eu gosto. Faltam os piercings, que provavelmente seria apenas um, as tatuagens, o guitarrista eu só beijaria se fosse Eddie Vedder, o cabeludo eu já beijei e peguei raiva da raça, o resto eu já devo ter feito também. Menos o mais importante, a última coisa que facilmente poderia ser a única.

Queria ter uma paixão que converse, que diga que não e que sim ou sobretudo que diga talvez, mas que diga algo. Que se comunique. Que tenha medo, mas que tenha medo depois que deitar a cabeça no travesseiro lembrando como é bom estar com aquele medo. Mas parece que tudo é muito (e eu nunca quis pouco). Abusei do que eu achei que era, do que eu achei que gostava e de quem eu admirava cegamente. Os homens que gostam das coisas que eu gosto são estranhamente os piores. O único desse tipo que eu gosto, mas gosto desconfiada, é meu conterrâneo e objeto de admiração não mais secreta: Wagner Moura. Ele é perfeito. Deve ser insuportável.

Eu realmente pensava que encontraria minha grande paixão nesses ambientes. Amanhã eu estarei em um desses ambientes. Certamente só encontrarei caras casados cuja dissimulação já chega antes de sua própria presença, caras solteiros que já fazem questão de evidenciar o porquê disso, caras estranhos, caras esquisitos, caras que gostam de caras, caras que estão com as namoradas em busca de uma terceira boca, mas nunca caras parcialmente normais que agem minimamente de acordo com a moral social (traduzindo, sem assédio). É, eu sei. Não acho que “faz o que tu queres, pois é tudo da Lei” seja bem interpretado por homens. Mas o Estado são eles, então tudo certo.

Se eu tivesse um vestido vermelho, eu usaria. Prefiro me enfeitar com cores quentes porque às vezes meu olhar congela. Não quero que vejam minha verdade. Um contato visual de cinco segundos já é capaz de fazer ver estrelas. Nada mais do que isso. Não é charme, sou eu. E é aprisionante ser assim. Mas eu tenho certeza que te deixei entrar por mais tempo que isso. No olhar, é claro. No mais íntimo que poderia ser. E lá eu vi que você e eu somos mais parecidos do que poderíamos imaginar. Eu acho. Reconhecimento de espécie é uma coisa louca. Somos ambos presos. Só que diferentes. Em menos de cinco segundos o celular reconhece o nosso rosto e, assim, a tela é desbloqueada. Em menos de cinco segundos a olhar reconhece o outro e, assim, a paixão é desbloqueada (?). Me parece simples. Mas tudo é simples até que se complique.